6:56Uma história sem fim

por Ivan Schmidt 

O golpe de estado de 1964, que os militares insistem em chamar de revolução está completando 51 anos no dia 1º de abril, o que sempre foi considerado grossa sacanagem com a implicância castrense de adotar o dia anterior como a data da Redentora, apelido jamais descolado do imaginário popular na rotulagem da ação militar. Imaginemos o impacto folclórico, para dizer pouco, de uma revolução deflagrada no Dia da Mentira.

Pelo noticiário dos últimos dias não se percebe nada mais que o silêncio dos quartéis quanto a quaisquer manifestações na data, embora se saiba que o tema sempre apareça na ordem do dia de comandos importantes.

Talvez o Clube Militar, que concentra a suma do pensamento da oficialidade superior na reserva, também torne público mais um de seus contundentes manifestos tecendo encômios ao golpe, ainda mais agora sob o efeito do relatório da Comissão da Verdade.

Mas, no geral, imagino que nenhum estrelado das Forças Armadas, ainda na ativa, tenha motivos para falar sobre o que ocorreu nos idos de março de 1964, até mesmo em face do momento extremamente delicado vivido por nossas instituições democráticas.

Haveria de ser um desserviço ao país, jogar mais lenha numa fogueira que ameaça transformar-se em incêndio de proporções indesejáveis. Algo que nem a famigerada “linha dura” dos idos de março estaria a fim de bancar.

Poder-se-ia até afirmar que foi isso o que acabou acontecendo naqueles dias remotos, quando o general Olimpio Mourão Filho em sintonia fina com o governador de Minas Gerais, José de Magalhães Pinto, ordenou que parte da tropa aquartelada em Juiz de Fora pegasse a estrada para o Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março, desencadeando o golpe sem dar a mínima ao grupo de oficiais de patentes superiores, especialmente o general Castello Branco, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, tido como presumido líder principal da conspiração militar contra o governo de João Goulart.

Conspiração que contou com a adesão e financiamento de mega-empresários, além da irrestrita simpatia da alta burguesia, reputados como os legítimos mentores do golpe. Essa, porém, é outra história.

Voltando a Mourão, o mesmo se tornou figura manjada por reações estapafúrdias como a descrita pelo biógrafo de Prestes, Daniel Aarão Reis: “Em 1º de outubro de 1937, reinstaurou-se o ‘estado de guerra’, aprovado pelo Congresso, suspendendo as garantias constitucionais, em virtude do anúncio do Plano Cohen, forjado pelo coronel integralista Olimpio Mourão Filho e publicado com grande estardalhaço. Uma farsa, que o Exército divulgou, atribuída aos comunistas, como se houvesse uma retomada da ofensiva dos ‘vermelhos’. Recriou-se uma atmosfera de ‘caça às bruxas’, levando,  em novembro, ao golpe do Estado Novo, que mergulhou o país numa longa ditadura, a qual durou até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 45”.

Assim, ao legado de quem se considerou “uma vaca fardada”, expressão que está em suas memórias, acrescente-se a extrema competência para a armação e precipitação de golpes a torto e a direito.

Aarão escreveu ainda na biografia Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois mundos (Cia das Letras, SP, 2014) que “o golpe começou na noite de 30 de março, a partir de uma iniciativa do general Mourão Filho e de um dispositivo político-militar articulado em Minas Gerais sob liderança do governador do estado, Magalhães Pinto. O estopim foi um novo encontro de Jango com graduados das Forças Armadas e das polícias militares no auditório do Automóvel Clube, no Rio de Janeiro”.

Os próprios conspiradores ficaram surpresos, mas quase sem tiros o golpe foi vitorioso em pouco mais de 24 horas. “Uma derrota catastrófica e desmoralizante para as esquerdas, para os comunistas e para Prestes em particular”, diria Aarão.

Sobre a outra face da moeda ideológica, as direitas, porque havia mais de uma, o historiador cita que “ao menos alguns de seus chefes não precisaram de ordens para se moverem. Moveu-os o medo de tudo perder. Ou de tudo periclitar num caos imprevisível. Hoje se sabe que eram múltiplas as conspirações, que seu nível de desarticulação era alto, que havia ali contradições e ambições desencontradas e que as forças, lançadas de Minas Gerais, sob o general Olímpio Mourão, eram ridiculamente despreparadas”.

Tal conclusão foi objetivamente enunciada nos depoimentos de 12 oficiais que se destacaram na articulação do golpe, colhidos anos depois pelos pesquisadores Maria Celina D’Araujo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro, em trabalho elaborado pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, em 1994, que a Editora Nova Fronteira (RJ) deu à luz no livro Visões do golpe, no ano passado.

Por exemplo, o general Leônidas Pires Gonçalves que veio a ser ministro da Guerra do governo Sarney (escolhido por Tancredo Neves), tenente-coronel em 64 e servindo no Estado Maior do Exército com o general Castello Branco, respondendo à indagação dos entrevistadores sobre a orientação do governo militar vitorioso, afirmou: “Nós não tínhamos um ideário inicial. O que havia era um antiesquerdismo. Esse eu acho que foi o primeiro sentimento revolucionário – chamo de sentimento. Depois é que foi feito um ideário. Acho que o Meira Matos foi um dos principais redatores. Porque nós dois fomos para a Casa Militar do general Castello. Fui assistente do general Geisel nesse período: o general Geisel era o chefe da Casa Militar, e eu era o assistente”.

O depoimento do general impressiona pela tranquilidade com que abordou o tema da sucessão do primeiro presidente militar: “Pelo que vi antes de me afastar da Casa Militar, e pelo que conhecia do general Castello, acho que a sua grande preferência era passar o governo já democratizado para um civil. Há quem diga que ele tinha dois candidatos: Bilac Pinto e outro que sempre foi um civil, que era o Juraci Magalhães […] que de militar só tinha o título, porque tinha deixado o Exército havia muito tempo”.

Leônidas, entretanto, lembrou que a entourage do general Costa e Silva, então ministro da Guerra, forçou a barra para sua indicação: “Realmente, acho que o Exército sabia que o general Costa e Silva não era um homem que tivesse as especificações para assumir o quadro. Até porque já se sabia, muita gente já sabia, que ele estava doente. Acho que aquela posse do general Costa e Silva foi feita mais pelos que o rodeavam. O panorama é sempre o mesmo: todo cometa, quando sobe, tem aquela turma toda pendurada na cauda”.

O general Meira Matos, segundo Leônidas um dos autores do ideário do regime militar, na patente de coronel comandava o 16º Batalhão de Caçadores sediado em Cuiabá. Tornou-se mais visível para a opinião pública ao ser transferido para Goiânia em novembro do mesmo ano como interventor, face à cassação do mandato do governador Mauro Borges.

Sobre sua participação na movimentação do final de março explicou que “esperava a revolução para dois ou três dias depois”, mas quando o Mourão deu a largada “não consultei mais ninguém, larguei também. Fui para Brasília. Eu não tinha muita tropa, mas consegui chegar a Brasília no dia 1º de abril. Na tarde desse dia, João Goulart tinha fugido de Brasília”.

Confirmando a precária situação logística do Exército na época, Meira Matos lembrou que não havia em Cuiabá viaturas suficientes para o transporte de um batalhão de 600 homens. O comandante resolveu o impasse da seguinte maneira: “No dia em que saí, requisitei 50 ou 60 caminhões de fazendeiros e comerciantes e ali coloquei a tropa”, porque naquele tempo “o Exército estava pouco motorizado”.

O general Adir Fiúza de Castro, excelente quadro da conspiração e experiente homem de informação, dirigiu o CODI do 1º Exército (RJ) e, em 1974 assumiu o comando da Polícia Militar do Estado do Rio. Parte de seu longo depoimento não deixa dúvida sobre o descompasso reinante entre os grupos que tratavam da deposição de Jango: “O principal motivo que unia todos os grupos conspiratórios, embora um desconfiando do outro, era afastar a hipótese do Brasil se transformar numa república sindicalista ou popular ou o que seja. Isso era comum. Mas essas duas grandes correntes não tinham muito bom entrosamento. Ou aliás, não tinham quase nenhum”.

Muito mais foi revelado pelos oficiais ouvidos pelos pesquisadores do CPDOC, elucidando uma série de dúvidas sobre a verdadeira natureza da intervenção militar em 1964, que acabou virando uma guerra de egos e vaidades. Destarte, quem fez a melhor análise do experimento militar de governo foi o general Otávio Costa, que viria a ser o chefe da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), criada pelo presidente Ernesto Geisel: “O grau militar é uma tirania, com consequências para toda a vida. O grau do aluno ao sair da Escola Militar marca todos os passos de sua vida. Um sai em primeiro lugar, outro em último. Para recuperar essa diferença ao longo da vida é preciso muito milagre, é quase impossível”.

E todo este torneio floral de aptidões generalescas se prolongou por 20 anos (não havia espaço para brilharecos de almirantes ou brigadeiros), legando ao país um retrocesso político que ainda hoje não foi superado. Basta olhar para o planalto central…

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