6:42O lobo no caminho

por Ivan Schmidt 

Política sempre foi para o escriba um ambiente de aparência (a definição é da filósofa Hannah Arendt) para observar as múltiplas reações humanas – hombridade, fidelidade e lealdade ou, exatamente, os seus contrários – além de muitas outras “qualidades humanas” esbanjadas por figurinhas carimbadas que evoluem à sombra das muitas legendas existentes em nosso país. Espertalhões, aproveitadores, picaretas e vendilhões, ao que se percebe dos lances da vida partidária, para dar de barato, coabitam nesse universo na proporção de nove para cada cidadão imbuído da verdadeira vocação de servir.

Nunca fui filiado a partido algum, exceto ao Diretório Estudantil da União Democrática Nacional, em Florianópolis no final dos anos 50, muito mais convencido por amigos prezados do que propriamente por alguma inclinação política. Na época, meus ídolos eram Carlos Lacerda e Jânio Quadros, que seria o candidato a presidente da República (meu primeiro voto) pela coligação liderada pela UDN, com o resoluto apoio do intimorato tribuno que havia posto abaixo o império getulista.

No entanto, demorou pouco para a percepção de que “partido” era, de fato, a expressão mais adequada para definir as reais intenções – tanto as reveladas quanto as submersas – dos que se comportavam como “donos” das siglas. O Diretório Estudantil de então começou a mostrar alguma simpatia pela pretendida candidatura de Nilson Bender, alto executivo da Fundição Tupy de Joinville, ao governo de Santa Catarina.

O gesto, que os moços imaginavam coerente e capaz de inflamar o partido, gerou a fulminante reação do cacique que chefiava a UDN, o ex-governador Irineu Bornhausen, que por meio de um preposto (um magano a quem doara um cartório em Floripa), mandou a rapaziada esquecer definitivamente o assunto. Compreendi então o que “partido” realmente significava.

Passado pouco mais de meio século, pelo que sei a economia interna partidária não mudou grande coisa, e se mudou foi pra pior, porquanto os caciques continuam a dar as ordens aos demais basbaques da taba, que as obedecem cegamente ou são enquadrados como indesejáveis e rebeldes, quando não decidem por si próprios sair à procura de ares menos nefastos, migrando para outra legenda ou organizando um novo partido.

O exemplo mais recente é o do ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, que fez reviver o Partido Social Democrático (PSD), partido conservador ao extremo que nos anos 40 e 50 do século passado sustentaria politicamente os governos do marechal Gaspar Dutra, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, para passar para o lado oposto do picadeiro quando Jango Goulart, sucessor de Jânio, começou a dar mostras de render-se ao populismo trabalhista inspirado pelas centrais sindicais. Kassab queria um partido anódino sem qualquer conteúdo ideológico, uma massa de manobra gelatinosa imediatamente adaptável às circunstâncias. Deu tão certo que Kassab não só aderiu ao governo, como recebeu a prebenda do Ministério das Cidades, além de contar com o correligionário Afif Domingos no Ministério da Micro e Pequena Empresa.

No Brasil atual a situação político-partidária mostra o PT entrando em seu quarto mandato presidencial, um recorde, o PSDB no papel de vanguarda da oposição, e o PMDB, grupo mais expressivo da aliança partidária armada em torno da presidente Dilma Rousseff, também integrada pelo PP, PDT, Pros, Solidariedade e assemelhados. Quanto à aliança, diga-se de passagem, exibe perigosas fissuras estruturais, pondo em risco de deitar por terra uma torre até então imbatível. A presidente já vem arcando com críticas nem tanto veladas e negaceios oriundos de seu próprio partido.

Na maioria, o arco partidário se comporta como os antigos cobradores de contas em atraso, sempre alardeando o valor de seus votos na aprovação de projetos de interesse do governo, exigindo cada vez mais a paga na liberação de emendas orçamentárias (agora existe uma lei obrigando o governo a fazer isso), ou a nomeação dos apadrinhados.

Impregnado de sua relevância como avalista da governabilidade, sua exponencial moeda de troca, sem a menor preocupação com a cor do estandarte alçado por quem exerce o poder, o PMDB dispõe em suas fileiras do vice-presidente Michel Temer, dos presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, no entanto, desconfortavelmente incluídos na lista da Operação Lava Jato, entregue na noite dessa terça-feira (3), ao ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, pelo procurador geral da República, Rodrigo Janot.

O PMDB tem também vários ministérios, numerosa bancada no Congresso e bom número de governadores e, montado nisso avalia maquiavelicamente a artilharia disponível para um momento conturbado como o que o país vive. Tudo tem a ver, e é muito límpido a partir de agora, com os desdobramentos da Lava Jato e os julgamentos que em breve serão iniciados no STF.

É lamentável constatar que em pouco menos de 10 anos o Brasil estará novamente submetido a um revival mais profundo e deletério que o mensalão, com mais de meia centena de cidadãos com mandato político e/ou altos cargos na administração de empresas privadas acusados de crimes como corrupção, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, concussão e peculato, entre outras agressões à lei.

Quadros de extraordinário destaque no Congresso atual, Renan Calheiros e Eduardo Cunha negam, mas estão na lista de Janot, e isto é para arrebentar qualquer partido. Cunha já havia se insurgido contra a intenção do Palácio do Planalto e levou com um pé atrás a presidência da Câmara. E mais, a lavada no PT fez com que o partido do governo ficasse sem cargos na mesa diretora ou a presidência de comissões internas relevantes, como a de Constituição e Justiça ou Economia.

Ao que se diz, sabendo de que seu nome estaria na lista, o senador Renan Calheiros não compareceu ao jantar oferecido pela presidente Dilma aos parlamentares do PMDB, numa defecção acintosa em se tratando de convite de um chefe de governo. O indisfarçável destempero de Renan, afinal, recrudesceu na noite da última terça quando oficialmente soube da inscrição no rol de acusados da Lava Jato. Agastado pela conduta que considerou inaceitável de parte do governo e também por não ter sido atendido em pedidos de nomeação de indicados, o senador devolveu ao Planalto a MP 669 que reduz o benefício fiscal de desoneração da folha de pagamentos. Ato que lhe ensejou o aplauso da oposição, embora recebido como retaliação pelo governo. Até onde vai a arrogância peemedebista?

Como um lobo postado na trilha à espreita da presa, é óbvio que o PMDB acompanha com ar compungido e, só aparentemente penalizado, a discussão derivada do até agora nebuloso impeachment da presidente da República. Tudo leva a crer que, fundado em informações filtradas de contatos estreitos com elevadas instâncias da vida nacional, como interessado direto na sucessão, o PMDB sinta-se pela primeira vez em sua história com os pés roçando o Palácio do Planalto.

Outro argumento que favorece a postura do mordomo que tudo vê e tudo sabe, mas permanece impassível como uma máscara mortuária, foi a recente investigação feita pela Paraná Pesquisas (publicada na Gazeta do Povo dessa quinta-feira) mostrando que 82% dos eleitores paranaenses reprovam a gestão de Dilma Rousseff. Ee dos que votaram nela no segundo turno 51% não voltariam a fazê-lo se a eleição fosse hoje. A pesquisa se restringe ao Paraná, mas com alguma diferença para mais ou para menos, a meu ver reflete nesse momento o pensamento predominante em todo o país. O mordomo constrangido já botou a champanhe no gelo.

A história é feita de eventos, escreveu a filósofa Hannah Arendt que citei na abertura da reflexão, no livro A condição humana (Forense-Universitária, SP, 1981), publicado originalmente em 1958 pela Universidade de Chicago (EUA). No campo político brasileiro o empilhamento de fatos das últimas décadas, digamos, fez com que o Partido dos Trabalhadores elegesse, em 2014, o presidente da República pela quarta vez consecutiva em 12 anos, na verdade, uma façanha memorável para um partido originário do sindicalismo em qualquer latitude.

Sobre a questão, posto que ao examinar um contexto distinto, Hannah assinalou que “os sindicatos, que defendem e lutam pelos interesses da classe operária, são responsáveis pela posterior incorporação dessa última na sociedade e, sobretudo, pela extraordinária melhora da segurança econômica, do prestígio social e do poder político da classe”. Entrementes, lembraria que “os sindicatos jamais foram revolucionários no sentido de desejarem a transformação simultânea da sociedade e das instituições políticas que a representam; e os partidos políticos da classe operária têm sido quase sempre, partidos de interesses em nada diferentes dos que representam outras classes sociais”.

A pensadora alemã, uma das mentes mais prodigiosas do século 20, chegaria à conclusão de que “os destinos históricos das duas tendências presentes na classe operária, o movimento sindical e as aspirações políticas populares, não podiam ser mais diferentes do que são: enquanto os sindicatos, ou seja, a classe operária, na medida em que é apenas uma entre as classes da sociedade moderna, têm ido de vitória em vitória, o movimento político dos operários tem sido derrotado sempre que ousa apresentar suas próprias reivindicações, em contraposição a programas partidários e reformas econômicas”.

No Brasil não houve (ainda) a ousadia da apresentação de reivindicações próprias pelo governo, embora setores internos do partido volta e meia falem sobre controle social da mídia, reforma agrária e outras reivindicações. O que houve foi a destrambelhada decisão de transformar em devaneios as inúmeras promessas mirabolantes feitas em campanha pela então candidata. Estaria no fim o ciclo petista?

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