12:34Ouro sobre azul

por Ivan Schmidt 

Um livro absolutamente imprescindível para os amantes da literatura e, muito mais que isso, para os cultores da palavra. Trata-se do mais recente volume a contar com a assinatura de João Manuel Simões – Ensaios escolhidos – lançado pela Editora e Livraria do Chain. A seleção dos ensaios e o prefácio enriquecedor são de responsabilidade do professor e jornalista Hélio de Freitas Puglielli, que logrou o êxito de acomodar em 430 páginas a suma emblemática duma obra escrita ao longo de 50 anos e, que segundo diz o autor sem falsa modéstia ou jactância “exigiria muito mais de mil páginas”.

Nascido em Mortágua (Portugal), o menino João Manuel veio para o Brasil em 1954 com os pais e o irmão Bráulio José. A cidade escolhida pela família foi Curitiba, onde o escriba luso-araucariano (como se define) mora até hoje.

Os ensaios coligidos por Puglielli, ele também literato com espaço cativo entre os grandes pensadores paranaenses, por coincidência o primeiro editor de JMS, começaram a ser escritos há mais de meio século e publicados na página literária que o prefaciador mantinha no jornal O Estado do Paraná. Pouco depois os ensaios passaram a ser publicados também pela Gazeta do Povo, O Dia, Diário do Paraná e Correio de Notícias e, nos anos 90, em O Estado de S. Paulo, que deu amplo espaço a dois trabalhos tidos como fundamentais pelo autor, sobre Honoré de Balzac e Camilo Castelo Branco.

A série de ensaios, uns mais longos e outros nem tanto, mas com igual valor intrínseco, começa com Antero de Quental e passa – entre muitos outros ilustres homens de letras – por Antonio Vieira, Camilo Castelo Branco, Camões, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Thomas Mann, Dalton Trevisan, Cervantes, Dostoievski, Albert Camus, André Malraux, Marcel Proust, Miguel de Unamuno, Tchecov e Paulo Leminski, premiando os leitores com críticas eivadas de erudição e perfeito domínio da capacidade analítica.

Mesmo que a seleção não tenha se preocupado em datar com dia, mês e ano os ensaios agora reunidos, o leitor com alguma prática da sinalização demarcatória do continente literário perceberá com facilidade que a abordagem multiforme ilumina a ampla ribalta em que pontificaram os autores das obras mais relevantes da literatura mundial.

O livro de JMS vale pela densidade com que o autor brinda o público com informações privilegiadas, frutos de leitura vasta e proficiente e, diria eu, da familiaridade do geógrafo com o ambiente que pretende descrever. Um dos melhores exemplos, a meu ver, está na classificação dos “outros eus” do poeta Fernando Pessoa, os chamados heterônimos. No dizer de JMS, eles são “seres – pessoas – com individualidades distintas, mentalidades diferentes, filosofias de vida e cosmovisões independentes”. Aliás, vão mais a fundo porquanto encarnam estilos poéticos inconfundíveis. JMS, também poeta (e dos bons), pinçando talvez os sentimentos mais recônditos de Pessoa, acrescenta que “sendo os estilos dos diversos heterônimos tão diferenciados, dão realmente a impressão de que pertencem a diversos poetas concretos, quando são meras projeções ficcionais. Pessoa chega ao extremo de inventar para cada um deles uma biografia individual. Desenha-lhes o perfil físico. Radiografa os seus organismos, penetra nas suas almas”.

Os heterônimos, na visão analítica do escriba luso-araucariano, são “indivíduos que se desdobram no plano físico, na esfera mental e no terreno psíquico, escrevem, pela mão de Pessoa, por assim dizer, mediunicamente, páginas poéticas das mais poderosas de toda a riquíssima poesia portuguesa”.

Outro olhar de lince é dirigido por JMS sobre a obra do curitibano Dalton Trevisan, que considerado uma espécie de Anton Tchecov brasileiro. A consistente similitude escavada pelo crítico é que “ambos começam por sacrificar com devoção no mesmo altar da objetividade, do rigorismo, da concisão, da síntese, da contenção verbal. Numa palavra: da economia de meios na tessitura narratológica. Ambos pretendem ser – ou melhor, são, de modo intencional – miniaturistas, pintores de estampas e gravuras breves, morfologicamente esquemáticas (ainda que poderosas, quase sempre), em oposição aos murais, afrescos, painéis e polípticos, por exemplo, de um Tolstoi ou de um Dostoievski”.

JMS também viu diferenças fundamentais entre Tchecov e Trevisan e assim as delineou: “Enquanto o russo, nos seus contos, parece participar, vibrar, integrar-se, comover-se e sofrer com o destino e as vicissitudes existenciais das suas criaturas, tocado por um sentimento insopitável de solidariedade humana, o brasileiro age de modo diferente. Há nele algo do ‘voyeur’ clandestino, olhando de soslaio, com olhar oblíquo, maquiavélico e viperino, as cenas da vida que vai pintando em  sua tela”.

Divergências e assimetrias nos escritos de Trevisan e Tchecov não param por aí. JMS observa que “enquanto a atmosfera que envolve os contos de Tchecov é sempre diáfana e pura, a de Trevisan parece poluída, rarefeita, contaminada pelo vírus mortal da desesperança”.

“Trevisan é repórter e cronista de um cotidiano distorcido”, testifica o crítico, ao passo que Tchecov “copia, imita, reproduz a vida”.

Dono de estilo inconfundível, caminhante de trilhas também palmilhadas com garbo por José Veríssimo, Sílvio Romero, Agripino Griecco, Silviano Santiago e Leyla Perrone-Moisés, entre tantos, sob a benção canônica do inesquecível mestre Wilson Martins, JMS não esconde suas predileções e aponta, sem medo de errar, as figuras de Fernando Pessoa, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade.

Pessoa foi, a seu critério, simplesmente um dos maiores poetas de todos os tempos, Machado de Assis o Amazonas do verbo, beleza e encantamento e Drummond, um nome emblemático ausente da galeria dos Prêmios Nobel de Literatura. “Da mesma forma que a Academia Brasileira de Letras não soube honrar-se (e engrandecer-se) com sua presença maiúscula”, concluiu para em seguida acrescentar um argumento corajoso: “Afinal, não há lá dentro hoje – e talvez não venha a haver nunca – ninguém maior que ele. Ou que se iguale a sua estrutura. Temos aí duas injustiças flagrantes. […] No caso da Academia de Estocolmo, os suecos não conhecem o nosso idioma. No caso da Academia Brasileira, os acadêmicos parecem não saber (ou não sabem mesmo?) o que é poesia. Azar deles”.

Surpreendente, melhor dizendo, visionário ou premonitório, é o ensaio sobre o Catatau de Paulo Leminski, provavelmente publicado pouco depois do aparecimento do ansiado livro, aliás, na verdade, resultado da retumbante e genial estratégia de marketing pensada pelo próprio autor, na época, redator de agências de publicidade. A rigor, nunca se esperou tanto por um livro quanto pela obra-prima do polêmico morador do bairro Cruz do Pilarzinho.

Ao comentar o romance, JMS diria com apurado senso de humor que o famoso e famigerado Catatau, “depois de anos de labor beneditino” remetendo ao fato conhecido do período passado por Leminski no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, “para gáudio de uns e ácido despeito de outros, está vendo finalmente a luz do dia e a glória das estantes das livrarias, após os laboriosos lamentos dos prelos. Antes tarde do quem nunca, irmãos”.

“Valeu a pena a longa espera?”, perguntava JMS para responder com a franqueza primordial dos pais da matéria: “Em verdade vos digo que sim, irmãos. Aleluia! O menos que se pode dizer da obra paulina (ou leminskiana, para não confundir com o conspícuo apóstolo dos gentios, coisa que ele não pretende ser, apesar das barbas de profeta, do olhar iluminado e da crise religiosa que grassa por estas paróquias sublunares), o menos que se pode dizer, repito, é que se trata de um livro notável. O seu lançamento, recentíssimo, representou sem dúvida um acontecimento memorável para a literatura do Paraná. Comparável à aparição, no cenário nacional, dos primeiros volumes de contos desse demiurgo vampiresco que se chama Dalton Trevisan”.

O oráculo proferido por JMS há mais de 30 anos cumpriu-se à risca: “Catatau projeta Leminski e, portanto, o Paraná, no cenário nacional. É mais um paranaense que se evade da camisa de força da província, para ganhar horizontes mais largos”. E com mais propriedade ainda, como a experiência de um degustador de finos manjares o crítico emitiria seu juízo de valor: “No seu conjunto, um “prato” para “gourmets”. Inacessível às massas”. Nunca uma verdade literária foi tão meticulosamente expressa.

Não pretendo insistir, mas a leitura de Ensaios escolhidos, de João Manuel Simões, que o próprio autor classifica como principal legado de sua trajetória literária – ele é também poeta e contista – é indispensável. Na verdade, o autor decidiu seguir o conselho de um de seus muitos amigos, no caso o pranteado Luiz Carlos Veiga Lopes, então presidente da Academia Paranaense de Letras, da qual JMS é membro, que lhe cobrava reunir num livro “gordo” a totalidade da produção ensaística.

O desafio foi encarado e o professor Hélio Puglielli saiu-se com esmero da tarefa de fazer sobrenadar “o ouro sobre azul” da extensa obra de alguém que como poucos pode repetir a frase de Balzac: “Não tenho tempo para escrever menos”.

Ao livro, senhores!

 

 

 

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Uma ideia sobre “Ouro sobre azul

  1. Braulio José Simões

    Sou Braulio José Simões.
    O meu irmão João Manuel Simões, que se diz “animal antitecnológico”, pois está à margem da internet, pede-me para encaminhar a seguinte mensagem:
    “Dileto amigo e brilhante confrade Ivan Schmidt. Gratíssimo pela notável louvação dos meus ensaios. É um texto altamente honroso, grandemente gratificante e supremamente generoso. Três ou quatro amigos me chamaram a atenção para ele, anteontem. Peço-lhe, inclusive, autorização para reproduzi-lo na próxima edição da Revista da Academia Paranaense de Letras. Abracíssimos do Simões.

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