5:46Contradições e absurdos

por Ivan Schmidt

Há um termo – islamofobia – citado à saciedade nos últimos dias em função dos ataques terroristas em Paris. Podemos imaginá-lo como algo moderno e contemporâneo, ou seja, uma dessas palavras ou expressões costumeiramente criadas pela mídia para definir determinadas situações ou circunstâncias. No caso, islamofobia encarna o sentimento de repulsa de ocidentais, especialmente, em relação a indivíduos de ascendência árabe, mormente sendo eles adeptos da religião islâmica.

A palavra ainda era desconhecida, é claro, mas historiadores descobriram que na antiguidade do islamismo propriamente dito já havia, entre os fieis, pensadores e  eruditos que verbalizavam sérias dúvidas e questionamentos sobre a pretensa verdade revelada ao e por intermédio do profeta Maomé.

Alguns exemplos dessa investigação são encontrados no importante livro Dúvida uma história (Ediouro, RJ, 2005), da historiadora norte-americana Jennifer Michael Hecht, que se debruçou sobre a questão da dúvida religiosa a partir dos ensinamentos de Sócrates e Jesus até chegar a Nietzsche e Einstein, num período que estende por 2,6 mil anos.

A pesquisadora cita O livro da esmeralda, escrito por Al-Warrak, que era muçulmano, embora tido como maniqueísta pelos demais adeptos da religião. Um discípulo do escritor, Ibn al-Rawandi, que tornou-se fiel expositor das ideias do mestre proclamaria tempos depois que o Corão “diz coisas contraditórias e absurdas”, chegando a afirmar que “os ensinamentos de Maomé constituem um desafio à religião revelada: segundo Maomé, praticamente todas as coisas que em que judeus e cristãos acreditavam estavam erradas, já que haviam sido transmitidas incorretamente por seus profetas”.

Jennifer acrescenta que o próprio Rawandi formulava, já àquela altura, uma dúvida pertinente: “Ora, se não podeis acreditar na grande massa dos judeus e cristãos para saber os fatos verdadeiros, porque haveis de acreditar na multidão dos seguidores de Maomé que vos legaram a tradição islâmica?”.

Outro paladino da dúvida muçulmana antiga, segundo a historiadora, foi Abu Bakr al-Razi, que teria vivido entre 854 e 925 d.C., conhecido como “o maior inconformista de toda a história do islã, o mais ousado livre-pensador dentre os grandes filósofos muçulmanos, o menos ortodoxo e o mais iconoclasta”. Em outras palavras, Jennifer assevera que “al-Razi era um questionador que se devotou ao bem-estar da comunidade e tornou-se famoso por sua generosidade, inteligência e talento. Médico, foi considerado o maior gênio criativo da medicina medieval. Os livros de al-Razi tornaram-se obras clássicas da ciência médica árabe, e alguns deles chegaram a ser bem conhecidos no Ocidente. Seu estudo de patologia e terapia foi traduzido para o latim e durante muito tempo serviu de manual de ensino em diversas universidades européias”.

Al-Razi era contundente em seu questionamento à missão atribuída ao profeta e perguntava: “Em que vos baseais para considerar necessária da parte de Deus, a eleição de certos indivíduos, que mercê do dom de profecia se destacam dos demais, governam o povo e o subjugam? Por que um Deus optaria por semelhante método que lança as pessoas umas contra as outras, dissemina a hostilidade e fomenta o conflito? A atitude mais certa do Sábio dos Sábios seria conceder a todos o mesmo conhecimento necessário. Ele não colocaria uns acima de outros, e entre os homens não haveria rivalidade ou dissidência que os arrastassem à perdição. Trata-se de uma situação degenerada, que nenhum Deus previdente e compassivo inventaria”.

Palavras registradas para a posteridade antes que a era atual completasse seu primeiro milênio, e que ainda hoje soam com admirável autenticidade. A barbárie cometida em Paris por duvidosos seguidores do islamismo, condenada enfaticamente por relevantes clérigos da própria religião que negaram quaisquer vínculos entre a fé e desatinos como o massacre perpetrado contra pessoas inocentes (incluindo algumas de ascendência árabe), é um feito cuja origem se encontra na profunda deformação do sentimento religioso e sua apropriação pela ideologia política.

Ainda estão na memória coletiva as sentenças de morte (fatwas) impostas por líderes religiosos islâmicos contra o escritor Salman Rushdie pela publicação de Versos satânicos (1988), e Taslima Nasrin, médica e escritora de Bangladesh que em 1992 publicou o romance Vergonha. Evidências concretas da erupção do fundamentalismo islâmico e sua caudalosa onda de ataques terroristas em vários países, cujo ápice foi a destruição do World Trade Center, em Nova York, no fatídico 11 de Setembro de 2001.

Numa carta aberta dirigida a Taslima, publicada no New York Times, em 1994, quando ainda estava escondido, Rushdie exclamou: “Que fizeram eles do islã, esses apóstolos da morte, e como é importante ter a coragem de discordar dele!”.

Taslima descartou o Corão ao compreender que “a opressão e as injustiças religiosas só fazem aumentar, especialmente nos países islâmicos”. Por isso resolveu escrever o romance contra “os crimes da religião, particularmente contra a injustiça e opressão das mulheres”. Em entrevista a um jornal europeu, a médica revelou entre outras coisas que “o próprio islamismo não permite a democracia e viola os direitos humanos. E, como o próprio islamismo está provocando injustiças, é nosso dever alertar as pessoas. Temos a responsabilidade de despertá-las, fazê-las entender que as escrituras religiosas provêm de uma época particular e de um lugar particular”.

No extraordinário livro O choque das civilizações escrito em 1996 e publicado no Brasil em 2010 (Objetiva, RJ), o cientista político inglês Samuel Huntington, ao examinar as relações entre o islã e o ocidente revelou que “o conflito do século XX entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo é apenas um fenômeno histórico fugaz e superficial, se comparado com a relação continuada e profundamente conflitiva entre o islamismo e o cristianismo”.

Numa descrição verdadeiramente professoral, Huntington escreveu também que os “muçulmanos receiam e detestam o poderio ocidental e a ameaça que ele representa para a sociedade e suas crenças. Eles veem a cultura ocidental como materialista, corrupta, decadente e imoral”, sublinhando que “os muçulmanos cada vez mais atacam os ocidentais não por professarem uma religião imperfeita e errônea, que é, não obstante, uma ‘religião do Livro’, mas por não professarem nenhuma religião em absoluto. Aos olhos muçulmanos, o secularismo, a irreligiosidade e, portanto, a imoralidade ocidentais são males piores do que o cristianismo ocidental, que os produziu”.

Uma das conclusões da extensa pesquisa sobre as correntes da divisão ideológica do mundo contemporâneo é ser “o islã, uma civilização diferente, cujas pessoas são convencidas da superioridade de sua cultura e obcecadas com a inferioridade de seu poderio. O problema para o islã não é a CIA ou o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. É o Ocidente, uma civilização diferente cujas pessoas estão convencidas da universalidade de sua cultura e acreditam que seu poderio superior, mesmo que em declínio, lhes impõe a obrigação de estender sua cultura por todo o mundo. Esses são os ingredientes básicos que alimentam o conflito entre o islã e o Ocidente”.

Para o polêmico Christopher Hitchens, aqui lembrado na semana passada, naquele que muitíssimos crentes judeus, cristãos e islâmicos consideram uma abominável fonte de blasfêmias —Deus não é grande, como a religião envenena tudo – (Ediouro, RJ, 2007), “há algumas dúvidas sobre se o islamismo é uma religião distinta. Ele inicialmente supriu a necessidade dos árabes de um credo distintivo ou especial, e ficou para sempre identificado como seu idioma e suas impressionantes conquistas posteriores, que, embora não tão marcantes quanto as do jovem Alexandre da Macedônia, certamente transmitiram a ideia de que eram sustentadas por um desejo divino até eles começarem a sumir nos limites dos Balcãs e do Mediterrâneo”.

Em cáustica digressão, como é de seu feitio, Hitchens dirige seu lança-chamas (os jornais informaram que os terroristas que invadiram a redação do Charlie Hebdo dispunham até de lança-mísseis), para incinerar quaisquer resquícios de condescendência com a religião maometana: “Mas, quando estudado, o islamismo não é muito mais do que um conjunto de plágios bastante óbvio e mal montado, se valendo de livros e tradições anteriores quando a ocasião parece exigir”.

Na conclusão também corrosiva, o jornalista anglo-americano morto em 2011, afirmou que longe de ter nascido à luz clara da história, como Ernest Renan tão generosamente definiu, “o islamismo é, em suas origens, tão nebuloso e aproximado quanto aqueles dos quais se valeu. Ele faz afirmações grandiosas sobre si mesmo, invoca a submissão prostrada ou ‘rendição’ como máxima para seus seguidores e exige deferência e respeito dos não-crentes. Não há nada – absolutamente nada – em seus ensinamentos que sequer possa começar a justificar tal arrogância e presunção”.

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