8:36Joe Cocker, adeus

Não, não foi uma notícia. Na escuridão, depois de um dia cinza e chuvoso onde tudo parece perder a cor, o mar chegando na areia continuou mostrando a força da natureza enquanto uma voz metálica na tela de plasma dizia sobre a passagem dele para o outro lado. Por que temos ídolos? O que nos faz ser arrebatados por uma voz, uma história? No caso é a própria força da natureza que vai continuar cantando para sempre e envolvendo com o sentimento colocado nas palavras e expandido de forma tão forte, e tão doce, e tão sincera como aquilo que a gente descobre ter um dia e não sabe bem o que é: alma. Joe Cocker sempre foi arrebatador, até mesmo sem cantar. Bastava olhar para aquele corpo em forma de um tronco de árvore com a parte torácica e o abdome projetados que se destacavam ainda mais com seus passos bêbados de dança e sua guitarra/baixo invisível tocado enquanto a banda fazia a paisagem para suas interpretações fulgurantes, eletrizantes. Woodstock foi como uma bomba explodindo nas cabeças abertas num mundo onde drogas eram uma opção, vamos dizer, cultural, de um sonho que foi engolido, soterrado e depois aplainado pela tecnologia e pelo culto babaca das celebridades sem tutano. Com uma pequena ajuda dos amigos Beatles ele gritou, berrou, cantou, encantou e carregou uma legião que poderia estar, por exemplo, escondida num gueto pobre da Zona Leste de São Paulo, meninos ginasianos, adolescentes a viajar pela guitarra de Hendrix, a sacudirem com o sacrifício da alma de Carlos Santana, percorrerem o subúrbio londrino com o The Who, serem acariciados pelo folk de Crosby, Stills, Nash e Young, rasgados pelo blues de Janis Joplin, etc, etc, etc. Descobrir este inglês de Sheffield foi como ouvir a voz do pastor da redenção, se entregar às palavras e saber também que aquela voz do único branco a cantar com a dor dos negros, como alguém definiu bem na época, também era tão suave e maravilhosa, capaz de dar a Something, dos mesmos Beatles, uma interpretação quase definitiva – quase pois sempre é possível surgir algo melhor. Catapultado pela fama, Cocker foi abraçado em discos de vinil e montou a, como dizem, antológica Mad Dogs & Englishment, que excursionou num lindo DC-8 pelos Estados Unidos, pariu um disco duplo e um filme que o macaco de auditório aqui viu, junto com o irmão, sentado no corredor de um cinema enorme da avenida São João. Ali, naquela loucura coletiva, naquele happening onde se destacavam Leon Russell, Chris Stainton e Bob Keys, que partiu recentemente, Cocker atravessou a linha invisível e perigosa que as drogas não informam onde está ao usuário. E quase foi embora, naquele tempo. Um documentário sobre ele o mostra vagando pelas ruas de Londres com o olhar perdido. A voz se calou por um bom tempo até ele ser salvo, como sempre, por uma mulher – a sua mulher. A primeira vez que veio ao Brasil foi antes do “apagamento”. Cantou no ginásio da Portuguesa de Desportos, em Sampa. A muitos metros de distância, no anel superior do ginásio, um garoto extasiado fotografou-o com uma teleobjetiva vagabunda. Mas o registro está lá, nos slides. Eu vi Joe Cocker, que retornou algumas vezes ao Brasil depois, mas nada como a primeira vez… Na casinha de fundos do gueto do subúrbio, durante todo o período em que ele atravessou o espelho, o rádio sempre esteve ligado esperando o retorno. Era o nosso contato “ao vivo” com o mundo musical. Demorou, mas ele voltou, assim como Elvis, o Rei, que também tinha ressuscitado depois de ser soterrado sob o sucesso dos quatro rapazes de Liverpool. Joe Cocker voltou fervendo e High Time We Went reabriu todos os caminhos, sacudiu todos os ossos e o colocou na caminhada que sempre foi dele. Sim, ele se adocicou mais tarde com baladas. A voltagem diminuiu nos últimos anos, mas ao saber que a doença ruim no pulmão o levou, dá-se agora o desconto, mesmo porque nunca parou de cantar, mostrando que aquela energia da natureza que explodiu há quase meio século era como a força do mar chegando na areia para nos embalar no silêncio da noite.

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