14:23Todos somos americanos

por Ivan Schmidt

Afinal uma boa notícia em meio a essa maré de horrores em que se transformou o mundo dos primeiros quinze anos do século 21. Guerras fratricidas, atentados, sequestros, catástrofes naturais e corrupção – parte mais visível da decadência ética e moral do chamado bípede inteligente — enchem as primeiras páginas dos jornais dos quatro cantos do planeta.

Os presidentes Barack Obama e Raúl Castro anunciaram quase simultaneamente pela televisão que Estados Unidos e Cuba estão reatando a conversação diplomática com vistas – esperam todos os homens de boa vontade – à remoção de quaisquer empecilhos que impediram por 53 anos as relações bilaterais entre ambos os países. Aleluia!

O presidente norte-americano afirmou em seu discurso que o momento é propício para a criação de um novo capítulo na história desse relacionamento conturbado, destacando que a barreira ideológica e econômica erigida em 1961 “não faz mais sentido”. O pragmatismo de Obama, mesmo que tardio, apontou causas muito mais desafiadoras para os governos contemporâneos, tais como a ameaça representada por grupos extremistas como a Al Qaeda, Estado Islâmico e Taleban.

Cinco décadas depois, dizem que com a interveniência pessoal do papa Francisco, o lamentável balanço é que o isolamento imposto pelos Estados Unidos a Cuba simplesmente não surtiu o menor efeito positivo. Numa espécie de “minha culpa, minha máxima culpa”, falando em nome de milhões de cidadãos norte-americanos e das culminâncias do poder da República consolidada por Lincoln e outros grandes presidentes, Obama declarou falando em espanhol: “Todos somos americanos”.

Em Havana, o presidente Raúl Castro confirmou a intenção de ambos os governos na busca do entendimento, destacando que muito trabalho ainda precisa ser feito, referindo-se especificamente ao embargo econômico que deverá persistir por algum tempo, sublinhando o grande prejuízo sofrido pelo povo cubano.

As mudanças esperadas incluem o relaxamento no fluxo comercial, aumento das remessas monetárias dos Estados Unidos para Cuba e facilidades para a viagem de turistas norte-americanos à ilha. No médio e longo prazo os resultados benéficos do reatamento serão observados na instalação de empresas americanas na ilha, facilitando avanços no setor de telecomunicações e na indústria.

Os Estados Unidos pretendem abrir uma embaixada em Cuba, e para isso o secretário de Estado John Kerry foi incumbido pelo presidente Obama a tomar providências imediatas. No campo das atitudes concretas para selar os novos tempos entre Washington e Havana, o governo cubano libertou o agente da inteligência norte-americana Alan Gross, preso há cinco anos, ao passo que os Estados Unidos soltaram três agentes cubanos presos desde 1998.

No distante 1º de janeiro de 1959, com a fuga do ditador Fulgêncio Batista, antigo sargento do exército cubano que dera um golpe de estado, os rebeldes chefiados por Fidel Castro que voltou secretamente à ilha em 1956, desceram das montanhas – o símbolo era a Sierra Maestra – para ocupar cidades, bases militares e prédios públicos, quase em nenhuma resistência militar.

O governo dos Estados Unidos reconheceu o novo governo cubano, mas o rompimento deu-se pouco tempo depois, no dia 3 de janeiro de 1961, sob total pressão da Guerra Fria que tornava inimigas irreconciliáveis as economias ocidentais e a antiga União Soviética.

O fato foi agravado pela construção de bases de mísseis soviéticos em Cuba, a menos de 200 km do litoral da Flórida, o que quase levou ambos os países a um conflito bélico, por pouco não iniciado por ordem do presidente John Kennedy.

A notícia do triunfo da revolução cubana, com seus comandantes charmosos como o próprio Fidel, seu irmão Raúl, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e tantos outros, robusteceu em toda uma geração de sonhadores a ideia de que a revolução libertadora era possível em quaisquer latitudes. No Brasil também se vivia esse clima, com a empolgação trazida pelo governo presidido por João Goulart, político gaúcho simpático aos estudantes e líderes de sindicatos de trabalhadores, assim como a sargentos, cabos, soldados e marinheiros.

No entanto, o que se viu foi a intervenção das Forças Armadas e a implantação de um regime de força assemelhado ao do próprio sargentão cubano, estribada na força motriz da “missão” de evitar que o Brasil fosse transformado numa gigantesca Cuba. A meu ver, uma ideia fantasiosa nutrida por chefes militares e políticos conservadores que viam comunistas por toda parte.

Jornais cinematográficos e fotos nos jornais e revistas faziam vibrar milhares de jovens de todos os quadrantes. A foto do olhar perdido de Che Guevara em cima do palanque em que Fidel fazia suas intermináveis arengas correu o mundo. Na verdade, o revolucionário argentino tornar-se-ia o ícone mais popular da revolução, cujo rosto logo seria reproduzido em posteres e camisetas. Qual foi o projeto de guerrilheiro que nunca usou uma boina com aquela estrelinha espetada?

No dia 5 de janeiro de 1959 Fidel ainda estava a caminho de Havana, onde Che Guevara e Camilo Cienfuegos já haviam chegado e tomavam as primeiras providências para organizar as coisas. Alguém faria, então, uma descrição memorável do idealista nascido em Rosário: “Depois chegou o Che com seu traje boêmio, sua calma, seu cachimbo e seu ar de profeta revolucionário”.

Che permaneceu em Havana exercendo cargos importantes no governo cubano, partindo para novas (e frustradas) aventuras, até ser encurralado e morto por militares nas selvas da Bolívia. O francês Regis Debray chorou e John Lennon declarou mais tarde: “O sonho acabou”.

Obama e Raúl Castro resolveram exumar o cadáver.

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Uma ideia sobre “Todos somos americanos

  1. leandro

    Belo texto sobre parte da História das Américas. Tudo passou e agora as coisas passam a fluir de forma mais leve e para nós, brasileiro, em face o conteúdo histórico se compararmos com Cuba poderíamos ter no poder um Sargentão, quase que temos mas na realidade a situação com todas as denuncias temos mesmo um “sargento Garcia” que perde todas para o Zorro e agora também mesmo com a eleição na mão e com a caneta cheia, perde a Petrobrás para um verdadeiro bando.

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