por Ceci Juruá*
Atualmente, a extensão da malha ferroviária brasileira apenas supera 28 mil km, em grande parte inoperantes. Esta malha é menor do que aquela dos anos 1950, quando os trilhos percorriam 38 mil km e ofereciam, além do transporte doméstico de passageiros e cargas, ligações internacionais para Uruguai, Argentina e Bolívia, por exemplo.
A erradicação de ferrovias foi, inicialmente, uma conseqüência da prioridade concedida à indústria automobilística e ao asfaltamento de estradas, que captaram mercadorias e passageiros que eram até então usuários das estradas de ferro, perda que tornou certas linhas e ramais ferroviários anti-econômicos. Contudo não se pode dizer que tenha ocorrido, na época, abandono ou desprezo pelo transporte ferroviário, pois nas décadas de 1970 e 1980 os governos modernizaram antigas ferrovias, implantaram metrôs urbanos e construíram duas novas linhas ferroviárias: Carajás e a Ferrovia do Aço.Cabe registrar que nossa malha ferroviária poderia ser maior do que 200 mil km, no caso de sua expansão ter ocorrido em paralelo ao aumento da população e do Produto Interno Bruto/PIB. Nesse caso, ela seria hoje de dimensões próximas à dos EUA e permitiria menores custos de logística, pois a ferrovia ainda é o modal mais econômico e mais seguro, depois da hidrovia.
Desastrosos foram os anos 1990, quando a ideologia neoliberal e a financeirização promoveram a desarticulação do sistema nacional de transportes, tornando as modalidades independentes entre si, e as transformaram em ativos negociados em leilões e bolsas de valores. Um prejuízo inestimável para a economia nacional, cujos custos totais ainda não foram calculados. [1]
Após aquela década de privatização/desnacionalização, foram reconfigurados os monopólios regionais que haviam predominado até a estatização (anos 1930) e a formação da Rede Ferroviária Federal (1957). Surgiram assim a Transnordestina no Nordeste e a América Latina Logística/ALL no incomensurável espaço que vai do Centro Oeste ao Rio Grande do Sul, e que até a era Vargas haviam sido controlados pela Great Western Railways e pela Brasil Railways, respectivamente. A Ferrovia do Aço, vista como nossa maior obra ferroviária, e trechos da antiga Central do Brasil, foram repassados à MRS Logística, companhia que tem no quadro de controladores a Vale e as siderúrgicas Usiminas, Cia Siderúrgica Nacional e Minerações Brasileiras Reunidas-MBR.
Nos governos Lula e Dilma, houve tentativas de retomar o planejamento dos transportes e a expansão dos trilhos, com destaque para a construção de 1,8 mil km nas ferrovias Transnordestina, Norte-Sul e Ferronorte, que servem aos estados de Pernambuco, Mato Grosso, Tocantins, Goiás..[2] Mesmo assim, a malha atual permanece voltada para o transporte de minérios e de combustíveis, setores em que a estrutura logística é fonte de vantagens competitivas. Por isto, e porque a configuração espacial é monopólica, as ferrovias no Brasil deixam de cumprir o papel de eixos estruturadores do transporte nacional, em articulação com os outros modais. Sem integração nem seleção dos modais por critérios técnicos, predomina no transporte de cargas e de passageiros uma aparente irracionalidade e custos elevados.
Trata-se no fundo de uma herança cultural, iniciada desde que os ingleses introduziram nos contratos de construção de estradas de ferro a cláusula mineral, questão que não mereceu até hoje a devida atenção na literatura sobre ferrovias. [3] É também da mesma época a prática de subvenção do Tesouro Nacional aos lucros privados de construtores e operadores, destacando-se naquela ocasião a garantia de juro de 7% aos capitais investidos na construção ferroviária.
No Brasil falta o reconhecimento que a ferrovia é uma fonte de poder sobre o território e seus recursos naturais, através do manejo de traçados, da manipulação de descontos tarifários e da disponibilidade de zonas de armazenagem, por exemplo. A esse respeito merecem reflexão as reações contrárias de produtores de soja, açúcar, etanol e milho do Paraná, Mato Grosso e vizinhanças, à fusão recente das empresas de logística ALL e RUMO (controlada esta por Cosan/Shell). Aqueles produtores temem que a nova empresa, com acesso a vários portos (em SP e RJ), não disponibilize para terceiros o transporte ferroviário ou, em caso contrário, imponha tarifas excessivas aos usuários não-controladores da ferrovia. Entidades patronais do Paraná oficiaram ao Ministro dos Transportes expondo suas apreensões sobre os efeitos monopolísticos dessa fusão, da qual poderá emergir a maior empresa de logística do Brasil, avaliada em cerca de R$ 10 bilhões.
De fato, a visão negocial é incompatível com os objetivos de eficiência e eficácia de um sistema de transportes. Aplicada a serviços públicos que são condições gerais de produção – caso dos transportes/ comunicações e energia -, as regras de mercado conduzem à captura privada dos benefícios gerados por economias externas e à socialização dos prejuízos/precariedades. Assim, a partir de sua entrega a conglomerados internacionais, com participação em operações de financeirização/especulação, nossa malha ferroviária foi sucateada e desarticulada, tornando-se incapaz de servir ao bem comum na movimentação de cargas e de passageiros.
O novo modelo em análise por investidores estrangeiros, é o de “Open Access”, que reserva ao capital privado a construção das linhas e sua manutenção, financiadas pelo Estado. Caberá à estatal VALEC comprar a disponibilidade total de movimentação de cargas na ferrovia, e repassá-la aos operadores privados que queiram utilizá-la segundo preços a combinar. Poderá ser este um novo sorvedouro de recursos públicos, a exemplo do que já vem ocorrendo nos serviços de energia. Nos dois casos, o modelo adotado procura justificativa no incentivo a um mercado competitivo inexistente, consolida a prática de lucros abusivos e amplia a cadeia de rendas de intermediação. O mais provável é que desembarquem aqui com a carteira vazia e voltem á pátria engrandecidos por sua agilidade na captura do excedente econômico gerado pelo trabalhador brasileiro.
Resta uma esperança: a formulação de um projeto de participação popular, uma CONFERENCIA NACIONAL DE FERROVIAS, nos termos indicados por Dilma Roussef no decreto 8.243, através da qual se possa redefinir prioridades e métodos de gestão mais democráticos nas ferrovias brasileiras.
[1] Na Malha Oeste, primeira a ser privatizada em 1996, o preço mínimo da concessão foi de R$/US$ 2,5 milhões, sendo de R$/US$ 8,2 milhões o pagamento à vista, que incluía a concessão, a primeira parcela do arrendamento e o custo do leilão. Soma ínfima tendo em vista a extensão da rede, 1.625 km, os equipamentos, 88 locomotivas e 2.617 vagões, e os imóveis das estações. O restante foi parcelado em 28 anos. Em 1995, a Malha Oeste obtivera receita de R$/US$ 37 milhões (Relatório RFFSA 1995).
[2] Ver José Augusto Valente, “Porque votar em Dilma a partir da logística e transportes”, artigo publicado no portal CARTA MAIOR”, ‘setembro de 2014.
[3] Art.30º, Decreto 1.030 de 7 de agosto de 1852, concedendo aos irmãos De Mornay privilégio exclusivo, por 90 anos, para a construção de um caminho de ferro na província de Pernambuco. Esta empresa, São Francisco Railway, gozou dos privilégios de monopólio na área de 5 léguas de um e outro lado da linha ferroviária, de isenção dos direitos de importação e da garantia do juro de 5% do capital empregado na construção ferroviária, entre outros. Ver Ceci Juruá “Estado e construção ferroviáris: quinze anos decisivos, 1852-1867. Tese de doutorado, UERJ/2012.
*Texto publicado no Jornal dos Economista