6:24A maldição do vestibular

por Célio Heitor Guimarães

Já disse aqui e repito sempre que necessário: odeio os vestibulares. São obras do demônio, verdadeiras máquinas moedoras de cérebros, que todos os anos assustam jovens e arrasam vocações. Aprendi com o meu querido Rubem Alves, que teve a experiência de professor da Unicamp e foi educador de nomeada a vida inteira, com especialização em jovens, que “os vestibulares são um desperdício de tempo, de dinheiro, de vida e de inteligência”. E, exatamente por isso, “a maior praga que infesta a educação brasileira”.

O menino ou menina passa a vida toda estudando para enfrentar essa maratona inútil e safada. Quer ser médico, engenheiro, advogado, dentista, professor, arquiteto, jornalista ou fisioterapeuta. Tem talento para isso, quer aprender para exercer a profissão com eficiência e bons resultados. Quer servir à coletividade e ao país. Ser útil ao semelhante no seu campo de atividade. Construir a sua vida, formar uma família e ser feliz na medida do possível, enfim. Mas tem de ultrapassar o maldito vestibular. Aí, os sonhos vão se dissolvendo e perdem-se no meio do caminho.

Durante o ano todo, em doses diárias duplas e até triplas, os adolescentes vão armazenando conhecimentos e informações desnecessárias e até mesmo estúpidas. Só para enfrentarem a disputa de fim de ano. Passados os exames, como acentua Rubem, “a memória se encarrega de esquecer tudo, porque a memória não carrega peso inútil”.

No meu tempo, era diferente. E nem por isso menos difícil e disputado. Mas ia-se ao âmago da questão. Pretendia-se estudar Direito, formar-se advogado? Então, submetia-se a testes de português, de literatura e gramática portuguesas, de latim e de uma língua estrangeira. Depois, acrescentou-se conhecimentos gerais. Hoje, com a “reforma” instituída pela ditadura militar e mantida pelos governos democráticos, tritura-se os jovens. Almeja-se ser advogado ou engenheiro, mas deve-se dominar física, química, biologia e coisas que tal.

Se, nesta altura da vida, eu fosse submeter-me ao tal exame vestibular, certamente seria reprovado. Como também seriam o ministro da Educação, os reitores das universidades e até mesmo os professores dos cursinhos pré-vestibulares.

Rubem Alves contava que, um dia, topou com a neta lendo um livro de biologia. Devia estar-se preparando para o vestibular. Mas não viu nenhum entusiasmo no rosto dela. Apenas uma expressão de tédio. Quis saber por que. Ela indicou-lhe, com o dedo um parágrafo assim composto: “Além da catálase, existe nos peroxíssomos enzimas que participam da degradação de outras substâncias tóxicas, como o etanol e certos radicais livres. Células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carboidratos. O citosol (ou hialoplasma) é um colóide…”.

Como é que eu consegui viver até aqui sem saber disso?!!!

Eduardo, meu neto, é um jovem que, neste final de ano, está sendo triturado pelo maldito vestibular. Estudou o ano inteiro. Já se submeteu ao exame da Universidade Positivo e foi aprovado. Depois, passou pela PUC/PR e também foi aprovado. Agora, é refém da UFPR. Ultrapassou a primeira fase e acha que foi bem no teste de redação.

Na segunda-feira, porém, chegou em casa de mau humor, fisionomia fechada, sem querer conversa. A explicação encontrei ontem, quarta-feira, na Gazeta: “UFPR investe em temas atuais e provas difíceis”. Pelo enunciado da matéria, “provas difíceis” foi uma gentileza do jornal aos gênios que produziram as questões da vetusta escola federal. Melhor teria sido dizer “provas maldosas, ardilosas e velhacas”, compostas de “pegadinhas”, que não se prestam para avaliar o conhecimento do vestibulando.

Na prova de geografia, por exemplo, pediu-se para o candidato “caracterizar o ciclo hidrológico e explicar como as atividades humanas podem alterar a dinâmica do seu funcionamento” (!). Soube-se depois que era apenas uma questão sobre a atual crise de falta de água… Mas se podia complicar, por que facilitar?… É cômodo para os burocratas da educação, na tranquilidade de seus gabinetes de trabalho, preparar armadilhas para os vestibulandos, desafiá-los com tarefas cifradas e frases rebuscadas e sem nenhuma objetividade. A eles pouco importa que o candidato já esteja fragilizado pela própria situação, pela disputa acirrada, pela insegurança da idade e por um horizonte que lhe parece cada vez mais distante.

Pois é, meu querido Eduardo, você que só quer ser engenheiro, talvez saiba que as células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carboidratos. Mas não sei se foi capaz de explicar como a atividade humana poderá alterar o “ciclo hidrológico”. Isso nem os técnicos e especialistas dos governos paulista/carioca/mineiro foram capazes até agora.

Ao que parece, professores que preparam questões para os vestibulares não têm propriamente interesse de aquilatar o saber dos alunos, não estão à procura de novos discípulos. Querem é saber se eles são espertos o suficiente para descobrir o que se esconde por trás das indagações formuladas. Afinal, esta não é a terra dos espertinhos?…

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3 ideias sobre “A maldição do vestibular

  1. Wilson Portes

    Caro Célio, você foi absolutamente preciso na avaliação do nosso famigerado exame vestibular, verdadeiro massacre contra a integridade mental e, mesmo, física, dos jovens estudantes.
    Aliás, sobre o malfadado tema, o nosso guru Rubem Alves tinha uma opinião muito particular,da qual compartilho: “Se fossem substituídos os exames vestibulares por um sorteio tipo ” bingo” , os sorteados teriam, ao final de seus cursos, provavelmente o mesmo desempenho que os que mourejaram para transpor essa armadilha sem nexo”.
    Há décadas que repito a mesma coisa: o vestibular no Brasil é uma excrescência.

  2. Ivan Schmidt

    Caro Célio:

    Faz tempo (muito antes do seu e meu neto) serem triturados por essa excrescência, como escreveu o chapa Wilson Portes, amadureci a ideia de que grande parte das perguntas constantes das provas do vestibular, tem o único escopo de eliminar literalmente milhares de candidatos que poderiam tornar-se profissionais de excelência em seus campos de atividade.
    Ceifados pelo emburrecimento treinado dos “sábios” que elaboram as tais provas, nossos meninos e meninas sonhadores são carimbados como incompetentes e inaptos para o terceiro grau, restando então o abominável mercantilismo das universidades privadas.

  3. Sergio Silvestre

    Olha,meu filho Daniel estudou em escola publica e está fazendo seu primeiro vestibular esse ano.
    Fez o curso universitário aqui em Londrina e está tentado engenharia civil.
    Passou bem pela primeira fase não precisando do regime de cotas para seguir sobrando 16 questões acertadas a mais do minimo.
    Na segunda fase ,redação e língua portuguesa acertou 80% e caminha para ser engenheiro aqui na UEL páreo duro,mas acho que ele vai conseguir.
    Quanto a dificuldade,o homem deve estar preparado até para as pegadinhas da vida senão ele perece bem antes do combinado.
    Só que eu não cobrei nada do meu filho e nem vou cobrar mais adiante,mas acho que ele vai passar por cima das pegadinhas e das questões difíceis,só não pode fazer redação como o seu pai senão….

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