6:33O menino do dedo torto

Theo_S_VB_17_novembro_14

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

M. era preto e forte. Recostado à parede, dormia com frequência. O corpo ereto. A professora ralhava. Os colegas brancos ríamos do susto de M. pego em flagrante nas manhãs insones em sala de aula. Éramos todos crianças a desvendar mistérios na escola pública de pátio de terra e cantina minguada. Eu gostava de estudar. Lutava para contrariar a maldição familiar que nos assombrava: meus pais aprisionavam poucas palavras no lápis entre os dedos. Nunca a mãe sentara-se ao meu lado para fazer a tarefa de casa. Impossível para ela ensinar o desconhecido. Quando M. acordava do breve sono (sonharia?), parecia assustado — um frágil animal diante do caçador. Balançava a cabeça como se algo se enroscasse em seus cabelos encarapinhados. Tirava o cansaço do corpo na marra. Às vezes, voltava a ressonar. Outras, mantinha-se solenemente acordado, com os olhos brilhantes, prestes a chorar.

Eu gostava de M. Era silencioso e delicado. Falava baixo e pouco. Não agredia o silêncio a sua volta. Movimentava com lentidão o corpo enorme e musculoso. M. era três anos mais velho que a maioria de nós. Quando se tem nove anos (o meu caso), três anos parecem uma eternidade.

M. sabia pouco, quase nada do emaranhado escolar. Estávamos terminando o primário. Para ele, juntar letras, formar palavras, dar sentido ao mundo num pedaço de papel era algo intransponível — um rio caudaloso a ser atravessado a nado em dia de tempestade. Nas aulas em duplas, sentava-me a seu lado na carteira estraçalhada pela delinquência infantil. Um professor mirim com seu aluno adotado. Tentava mostrar-lhe como era fácil ler e escrever. Bastava unir as letras de maneira correta, as palavras nasciam e significavam algo. Podíamos inventar outro mundo. Os números também tinham sua lógica. M. me encarava com um olhar bovino, sorria envergonhado e perdia-se em seu labirinto de silêncio.

M. entrara tardiamente na escola. Foi se enroscando, ficando pelo caminho. Aos doze anos já era um homem. Cansado. Trabalhava à noite num restaurante. Era uma espécie de garçom mirim. Lembro-me da palavra cumim. M. era um cumim. Um auxiliar de garçom. Algo impensável hoje em dia, quando a infância é colocada numa redoma de aço. Muitos trabalhavam. Depois da escola, a mãe me esperava na chácara de flores que nos abrigava para ajudá-la na lida diária. Passei parte da infância entre samambaias, avencas, crisântemos e azaleias. M. era o único que trabalhava à noite, às voltas com pratos no restaurante em Santa Felicidade — o bairro cujo nome sempre me pareceu uma ironia.

M. queria ser invisível, dormir em paz. Mas era impossível. Além de muito maior que todos nós, M. era preto e forte. Nós, brancos, mirrados, pequenos. E não dormíamos em sala de aula. M. também tinha marcas. A cicatriz de uma queimadura rasgava todo o seu antebraço direito. E o dedinho da mão esquerda era torto. Começava reto, mas na metade entortava para fora, formando um pequeno L. M., que pouco sabia das letras, carregava um L deformado na mão esquerda. Nunca mais encontrei M. Não sei por onde anda.

Sempre que faço a lição com meu filho de cinco anos, espanta-me como já sabe ler e escrever palavras difíceis. E se orgulha muito de fazer todas as letras do mesmo tamanho. Às vezes, quando estamos juntos a escrever o seu nome na folha da tarefa de casa, lembro-me de M.

O nome do meu filho começa com L.

 

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