11:28A sucessão dos anos

por Flora Munhoz da Rocha

Mais um ano. Tempo de fazer balanço da vida bem ou mal vivida. Meu Deus, como eu sou antiga. Em quanto ano já entrei, quanto fim de ano comemorei, quanto pinheirinho enfeitei, quanta ceia preparei. Focalizo as casas nas quais morei para me situar das emoções sentidas, em lembranças de luz e cor, em presentes que dei e recebi, na troca de cartões e telefonemas desejando paz. Em verdade toda felicidade se resume em paz. Que bom se fosse só desejar e acontecer. Nada altera. Tudo igual. Se a paz não está conosco, ela não vem com os bons votos dos amigos. Mas continuemos desejando boa sorte uns aos outros, é uma forma de confraternização, de vínculo.

A festa de Natal é fascinante para as crianças e os adolescentes que não tem passado. Aos que já viveram muito, é a festa da saudade, das ausências. Sempre falta um que amamos muito. Aquele espaço vazio, aquela falta aguda nos machuca.
Por outro lado, a saudade é um sentimento de uma beleza infinita. E a evidência de que amamos e fomos amados e não deixa de ser uma saudade feliz.

Ano que vem, repetiremos os mesmos preparativos, as mesmas expectativas para a tradicional reunião com parentes e amigos. A mesma delirante algazarra de crianças abrindo os presentes que não irão me contagiar. Virá o mesmo bloqueio, o mesmo clima mais para a melancolia de que para a alegria. Lembro com leveza de um sonho, de certo Natal quando até chorei de solução. Foi uma surpresa celestial. No meio da noite, o Coral Adventista entrou em nosso jardim e na suave claridade do luar cantavam as mais lindas canções natalinas enfeitadas por violinos, flauta doce e tudo mais. Fizemos silêncio e abrimos nossa porta para ouvir. Aquilo realmente passava da conta para que meu coração aguentasse sem precisar chorar.

Neste último 25 de dezembro, lembranças antiquíssimas teimavam em vir à tona, em emergir à superfície da memória. De repente eu não estava mais ali. Mudou o Natal ou mudei eu? Virei o rosto e um espelho me refletiu. Desconcertou-me o olhar perdido, a serenidade gelada. Desejei gritar: “Não Flora, não te quero mais assim uma Flora-estátua em ponto morto. Vê se sorri um pouco. O tempo passou mas a memória não usa calendário, foi quase ontem que havia magia, fulguração e agora assim tão dividida por um passado que não volta”.

Fico pensando se todo esse sentir contraditório, não seria decorrente de não darmos ao Natal seu verdadeiro sentido, seu verdadeiro significado. Natal não é festa nossa, é a festa de Jesus. É o aniversário dele que está sendo comemorado e quem tem seu pensamento para Jesus no dia do seu aniversário? Ele, lá de cima deve até ficar triste vendo que a preocupação é de presentearem-se bem, de comerem bem. É isso aí, tenho a certeza agora.
Andei em círculo este ano e terminei no mesmo lugar. Houve bons momentos, que não os têm? Enterneci-me com a doce fala dos netos, com carinho dos filhos. Tive um ombro, um refúgio quando precisei. Perdi e recuperei. Fiz-me presente a homenagens prestadas ao meu Bento. Viajei por lugares que nunca tinha havia visto. E era com olhos de despedida que me detinha nos detalhes dizendo-me: “Olhe bem porque você nunca mais vai ver”. Então me demorava atenta, tudo fazendo por gravar no mais profundo de mim mesma. Sabia que era a primeira e também a última vez. Se tornar a viajar serão outras paisagens, outras despedidas, outras emoções que não saberei definir nem explicar, só saberei sentir.
* “Quadros sem moldura”, de 1986

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