7:13Democracia é conquista irreversível

por Ivan Schmidt

Àqueles que sugerem a volta dos militares ao poder, provavelmente nascidos a partir dos anos 80, que só ouviram dizer e, com certeza, nada leram sobre coisa alguma, seria o caso de aplicar o dito consternado do Cristo pendente da cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.

É possível que a simples menção de uns poucos episódios protagonizados pelos senhores do golpe de 1964 esclareça a esses moços que parecem brincar com o fogo, o que realmente sucedeu naqueles idos e, mais, a disposição inquisitorial mostrada pelos militares e soldados “sem farda”, que ganiam e, ao mesmo tempo, agitavam as patinhas extremamente satisfeitos em obedecer as ordens do estamento  superior.

Estes episódios foram contados por Armando Falcão, velha raposa da política patrimonialista nordestina, deputado federal por vários mandatos e, durante o ciclo militar, ministro da Justiça no governo Geisel. As revelações estão no livro Tudo a declarar (Nova Fronteira, RJ, 1989), no qual depois de dez anos da derrocada do regime de exceção o todo-poderoso que sempre negou informações aos jornalistas, sob a insípida alegação do “nada a declarar e o futuro a Deus pertence”, resolveu tornar pública a essência daquilo que viu e viveu nos bastidores da ditadura.

O primeiro episódio narrado ocorreu no início de abril de 1964, na posse do novo comandante da Base Aérea de Canoas, Rio Grande do Sul. Um oficial-aviador brizolista disparou sua arma contra o brigadeiro Nelson Freire Wanderley, atingindo-o de raspão. “Ato contínuo – escreveu Falcão – o coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa – aquele que quisera derrubar o avião de Jango – reagiu e matou o agressor”.

Falcão estava no gabinete do então presidente interino Ranieri Mazzilli, deputado paulista e presidente da Câmara que assumira a presidência da República na urgentíssima vacância do cargo decretada pelo senador Auro de Moura Andrade, quando o interino recebeu o general Costa e Silva. Mazzilli pediu a Falcão que ficasse para ouvir a conversa.

Costa narrou em poucas palavras o acontecido de horas antes em Canoas, diante do estupor do presidente interino, que imediatamente condenou o absurdo da atitude, afirmando que jamais daria ordem para esse tipo de reação. O general respondeu na bucha: “Eu não vim aqui pedir autorização para nada. Eu sou o comandante-em-chefe das Forças Militares em operações. Vim, apenas, comunicar o incidente ocorrido e já encerrado. Agora, o senhor me dê licença, pois preciso ir embora”.

O primeiro presidente do ciclo militarista foi o marechal Castelo Branco, que na visão perspicaz de Armando Falcão “não ficava aquém, nem ia além”, embora tivesse “a coragem cívica de praticar atos duros, antipáticos e impopulares”, como a cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos de centenas de cidadãos. Para dourar a pílula, o memorialista acrescenta que “as contingências excepcionais do grave momento que vivíamos assim exigiam que fizesse. Era uma questão de consciência patriótica”.

Emblemática do poder incontestável que a revolução se arrogou a exercer foi a ato arrogante da cassação do mandato do ex-presidente Juscelino Kubitschek, eleito senador por Goiás. Costa e Silva, ministro da Guerra, levou o dossiê ao Conselho de Segurança Nacional propondo a medida, aprovada por todos os componentes, a exceção de Roberto Campos, então ministro do Planejamento. “O governo pretendia que houvesse unanimidade na votação da medida punitiva. Roberto Campos manteve a atitude e pediu exoneração do cargo, que o presidente recusou”, escreveu Falcão.

O serviçal mais realista que o rei prossegue sua louvação: “Excluindo o juízo faccioso dos que, por ideologia ou má fé, distorcem os indicadores idôneos e negam os êxitos e os benefícios da Revolução, o julgamento imparcial identifica e proclama os avanços do País no campo econômico principalmente no setor vital da indústria, no empreendimento público e privado, no plano social, na esfera da administração”.

Com a posse de Costa e Silva, no entanto, reanimaram-se as forças contrárias ao golpe. Falcão argumenta que “a desordem material ganhou as ruas, vieram as provocações no Congresso Nacional, a ‘Passeata dos 100 mil’. No contato com os militares sentia os reflexos da situação tensa que se criava. Eu sempre procurava deixar nítida minha opinião: ou a Revolução reagia, em bem do País, ou o Brasil naufragaria no caos”.

Assaltos a bancos, sequestros de embaixadores estrangeiros, assassinatos a sangue frio e atentados, de acordo com a ladainha falconiana, que espertamente omite  prisões, torturas, aposentadorias compulsórias e outras modalidades de terror psicológico contra supostos adversários, simplesmente rotulados de subversivos, tornaram inevitável o Ato Institucional nº 5, o Serviço Nacional de Informações (SNI), a fieira de cassações e confisco de bens.

Apologista do golpe, o então deputado federal da Arena, tentou convencer sem sucesso Castelo Branco a criar um organismo similar ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) da ditadura Vargas, “aparelhado para produzir e divulgar a doutrina da Revolução. A impressão que se tem é que a Revolução está perdendo força perante a opinião pública por falta de explicação, por ausência de propaganda inteligente para quase tudo que vem fazendo”.

No governo Geisel, a tarefa de encaminhar o processo da cassação de mandatos eletivos pertencia ao SNI, que apresentava ao presidente da República as exposições de motivos para justificar os pedidos de cassação. A coleta de votos dos membros do Conselho de Segurança Nacional era feita pelo ministro da Justiça, nesse período o próprio Armando Falcão, juntamente com o chefe da Casa Militar, general Hugo Abreu. Falcão revela que jamais houve sequer uma manifestação contrária dos membros desse mecanismo de exceção a qualquer das propostas de cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos.

Aos poucos, os mentores do golpe civil-militar de 64, removeram os obstáculos que na avaliação dos generais e seus capachos impediriam, a qualquer custo, a durabilidade do movimento golpista. A real intenção era ferir de morte a liberdade de expressão, o direito de divergir e até mesmo a representação pública. Foram cassados sumariamente o presidente João Goulart, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, os ex-governadores Carlos Lacerda (GB), Adhemar de Barros (SP), Leonel Brizola (RS) e Mauro Borges (GO), além de centenas de deputados estaduais e federais, jornalistas, padres, pastores, líderes estudantis e trabalhistas, entre tantos outros.

Numa atitude de extremo desprezo ao primado da democracia que, entretanto, recheava seus discursos, o presidente Ernesto Geisel assinou no dia 1º de abril de 1977 (de novo o fatídico dia) o Ato Complementar 102, suspendendo provisoriamente o funcionamento da Câmara e Senado, que haviam rejeitado por maioria absoluta, em dois turnos, o projeto de reforma do Judiciário, editado depois pela decisão extemporânea do Executivo que empalmou a tarefa de legislar em causa própria.

O então ministro Ney Braga sugeriu à comissão que todos os senadores da República deveriam ser eleitos por via indireta, pelo mesmo colégio (as Assembleias Legislativas) que elegia os governadores. Foi o embrião da excrescência dos chamados senadores biônicos, que acresceram em um terço a bancada governista no Senado e garantiram maioria folgada para aprovar até mesmo a revogação da Lei da Gravidade, se por acaso ali chegasse tal imposição dos generais.

Falcão foi também o ministro da censura aos meios de comunicação, e isso começou já no governo Kubitschek, quando pela primeira vez ocupou a pasta. “Comigo, a tesoura funcionou sem tremer a mão”, escreveu sem o menor pejo. Diante de ponderação de JK em relação a críticas feitas ao governo, o ministro se aproximou dos diretores das principais emissoras de rádio e televisão e patrocinadores dos programas de maior expressão, chegando ao cúmulo – ele mesmo diz – de controlar a lista dos possíveis entrevistados, delas excluindo, obviamente, os radicais e demolidores: “Somente brilhava na televisão e no rádio quem não apelava para a agressão às autoridades do governo, quem não pregava a violência. Fazia-se cumprir, desse modo, a letra dos contratos de concessão”.

Com a “autoridade” respaldada pela linha dura do regime imposto em 64, Falcão afiou novamente a tesoura e atacou sem piedade os veículos que mais criticavam o governo, dentre eles O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e a semanal Veja.

Um homem com esse tipo de escrúpulo estava bem talhado para sugerir, em algum momento de sua fértil carreira de esbirro o monstrengo ainda hoje conhecido como “Lei Falcão”, que passou a regular a propaganda eleitoral gratuita, hoje transformada num balcão de negócios envolvendo o tempo concedido a cada partido, em especial os nanicos, que os alugam descaradamente aos grandes.

Na época em que encaminhou o projeto ao Congresso, o ministro sequer imaginava que o ogro então proposto seria enxertado com tantos penduricalhos e casuísmos, que na última eleição presidencial a candidata Dilma Rousseff teve na propaganda gratuita, exatamente, o dobro da soma do horário destinado aos demais concorrentes.

Para consolo é apropriado revelar que nas memórias Falcão reconheceu que a lei não era perfeita: “Mas há quem tenha saudades dela, quando começa o irritante desfile de asneiras nos programas gratuitos”.

Em conclusão lembro o arriscado e abnegado trabalho coordenado por Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo, cujo resultado foi publicado no livro Brasil nunca mais. Estou certo que a leitura de poucas páginas fará com que os defensores do retorno dos militares abandonem essa ideia estúrdia, assim como Asmodeu continua fugindo da cruz…

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9 ideias sobre “Democracia é conquista irreversível

  1. Wilson Portes

    Boa, Ivan…

    Trabalho lúcido e oportuno, que serve de reflexão para o momento que vivemos.

    Abs

    Wilson Portes

  2. Célio Heitor Guimarães

    Grande Ivan, toma lá um abraço. Não sei como a imprensa escrita, vigilante e descompromissada, vive sem você. Ou será que é ela, a tal vigilante e descompromissada, que não vive mais?…

  3. Jose maria correia

    Excelente, o Ivan conhece tudo sobre o perīodo, os anos de chumbo deveriam ser estudados em escolas já que na pråtica somos um paīs sem memória e reflexão.

  4. Ivan Schmidt

    Obrigado, amigos. A solidariedade de vocês muito me honra e me faz acreditar que minhas pálidas reflexões estão no caminho certo…

  5. leandro

    Texto perfeito, conteúdo histórico real e lembra a alguns o que houve , aqueles que viveram aquela época sabem bem o que foi o período de amarras e regimes de força impedindo a liberdade de expressão, de todos nós sejam lá de onde são e de quem são. Agora precisa melhorar e muito e para sequer alguém pense em algo parecido de décadas passadas. Também precisa que o governo e seja lá qual for não faça besteiras que se vislumbram sombrias, principalmente naquilo que atinge diretamente o povo, a economia. Também que existam ações concretas, fáceis de percepção pela população e que fique claro e espante qualquer possibilidade desses fantasmas que fazem parte de muitas das ações, hoje tomadas com auxilio de entidades não reconhecidas e que tumultuam o sistema. Não se fala de esquerda ou direita e sim dos desacertos que o governo vem fazendo , como o tal controle social da mídia, das alianças externas que não trazem nada ao país. Assim a população está atenta e também ninguém imagina e gostaria de ter o retrocesso para uma ditadura. Tudo que se quer é o equilíbrio das forças e não o totalitarismo. Claro que não se pode negar a existência de um clima de insatisfação por uma grande parcela da população, muitos sequer sabem porque como os que se encontram favoráveis também muitos nem sabem porque são a favor. Grande parte dessa insatisfação foi provocada por ações de gente do partido governamental já em 2013, quando classificou uma parte do Brasil como da “elite branca” e “..daqueles que tem cabelos claros e olhos azuis..” Este tipo de colocação de qualquer liderança de governo não é algo muito inteligente, pois cria a cisão entre classes esquenta e existe a reação proporcional , quando essa reação é somente nas palavras e com elas ainda passa, o perigo é outro tipo de reação. De tudo isso esperamos não ter nenhum movimento ou sequer pensamento ou ação que possibilite chegarmos próximos aos anos 60. Mesmo com os descontentamentos podemos fazer o que fazemos neste blog e bem ou mal, com razão ou não, com a verdade de cada um expressamos nossas opiniões.

  6. toledo

    Caro Ivan Schimidt, li o seu texto, bem como as obras citadas. Participo com comentários irônicos aqui, mas em verdade lhe digo, me frustra, é ter acreditado em FHC, que se dizia um homem de esquerda, com ideias e convicções baseadas na social democracia alemã, e mostrou nos dois governos um compromisso com o grande capital ,faltou pouco para ele privatizar o Vaticano. Em 64 o país viveu a expectativa de um governo de esquerda com o Jango, mas os militares o derrubaram e o Tancredo, sempre numa boa , desde Getúlio e agora o FHC em 2014 quer empurrar goela abaixo o Neto do Tancredo. Natural que a direita queira o poder, mas com esses nomes, fica difícil de acreditar e levar a sério, por isso temos o bolsa PSDB, que tem o nome de Bolsonaros (pai e filho) fazendo apologia do regime militar. Ainda bem que habemus Dilma.

  7. Professor Xavier

    A democracia é boa, o texto é bom mas sempre há um reparo a fazer, porque? O Ivan já não disse tudo? Disse sim, mas aí este descontente trouxa branca precisa fazer o reparo dele. Se o texto é bom não precisa de reparo, muito menos de acréscimos, se contente cara, pelo menos uma vez na vida.

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