8:07Qualidade de morte

por José Maria Correia

Sempre ouvi falar de qualidade de vida, uma busca do homem pelo bem estar , paz de espírito, equilíbrio financeiro e ausência de maiores problemas e privações. Assim, foi que me surpreendi com espanto ao ouvir um amigo muito querido me contar em confidência que estava planejando uma qualidade de morte.

Lembrei desse episódio ao ler no noticiário que uma linda jovem norte americana de nome Brittany, em estado terminal de câncer , havia programado antecipar sua morte de forma assistida para evitar o sofrimento que viria com a evolução da terrível doença. Morte assistida é o eufemismo utilizado por organizações humanitárias em substituição a denominação de suicídio.

Pois o episódio com meu amigo, o brilhante médico Dr. Antônio, se passou em 2008 quando eu era o presidente da Paranáprevidência, antigamente conhecida como IPE.

Estava em uma tarde de segunda-feira na minha sala envolvido em afazeres administrativos quando a secretária anunciou a chegada de meu amigo. Era comum receber servidores públicos que vinham em busca de esclarecimentos sobre aposentadorias ou pensões e foi preparado para um assunto de rotina que recebi o Antônio.

Também não era raro que conhecidos viessem pedir orientações sobre problemas com pais idosos que vinham sendo vítimas de golpes de seguros, empréstimos e até mesmo explorados por filhos ou netos ingratos e inescrupulosos. Infelizmente o caso de Antônio era inusitado e bem mais grave.

Muito simpático, o médico, de uns 50 anos,  entrou em minha sala e após um afetuoso abraço sentou-se para o café que providenciei. Sem demora – e para o meu espanto, iniciou a conversa assim : “Olha Zé Maria, vim falar com você porque vou morrer na sexta- feira e preciso do seu auxílio.”

PAUSA …

Naquele momento fiquei totalmente chocado e sem palavras, mudo e atônito, igual a este exato momento quando parei de escrever.

PAUSA…

Como poderia aquele médico bem sucedido , jovial e com ótima aparência morrer dali a quatro dias-  e qual seria meu papel de amigo nesse enredo macabro ?

Assustado, só pude ouvir, e Antônio continuou, enquanto tomava tranquilamente sua xícara de café sem um mínimo tremor nas mãos ou qualquer expressão de mágoa ou de tristeza diante da tragédia anunciada.

Disse-me ele que estava velejando em Florianópolis com a esposa e filhos quando, ao fazer uma manobra com o barco, sentiu uma forte pontada no baço. Como médico, não deu maior importânci,  pensando ser uma distensão. Porém,  por cautela,  ao retornar para Curitiba submeteu-se a um exame de imagem quando recebeu a notícia terrível: estava com câncer em metástase e o prognóstico era de evolução com dores terríveis e incapacitação total em duas ou três semanas. A alternativa seria uma cirurgia radical de risco extremo, com pouquíssimas chances de cura, e risco de perder a vida acima de oitenta por cento.

Antonio fez uma reflexão profunda de como seriam seus últimos dias de vida, a decadência física , a perda do raciocínio, dores atrozes e o internamento entubado em uma UTI com uma sobrevida artificial e de extremo sofrimento para ele e a família.

Como profissional, conhecia os protocolos médicos seguidos rigorosamente pelos hospitais e que prolongam indefinidamente o sofrimento dos doentes incuráveis por mais que esses tenham manifestado  previamente o desejo de não serem submetidos a essa via crucis. 

Religioso procurou conselho espiritual e tomou a decisão: partiria para a cirurgia o quanto antes, ou seja, na sexta-feira, enquanto ainda podia decidir.  Tudo que não queria era definhar inconsciente e sedado ligado a um respirador para desespero da esposa e dos filhos condenados a assistir um calvário em agonia e sem sentido. Restavam quatro dias e ele tinha que correr contra o tempo, assuntos financeiros, procurações para a esposa, sucessão na clínica, repassar pacientes e tantas outras preocupações para não deixar problemas para os que ficariam.

Cirurgia e compromissos agendados , eu estava  incluído nessa programação  derradeira e teria que resolver as questões da pensão previdenciária da família. Aturdido e atônito, como se fosse eu a morrer,  garanti para meu amigo que se despreocupasse com as minhas tarefas – eu as cumpriria integralmente.

Desnorteado perguntei ao Antônio por que ele se decidira pela cirurgia se as chances de cura e sobrevivência eram mínimas, foi quando ele com uma serenidade impressionante me respondeu: “Tive uma qualidade de vida maravilhosa Zé Maria. Fui feliz em tudo, agora estou me proporcionando uma qualidade de morte.”

Nunca tinha ouvido essa expressão antes – e me impressionei muito com a lição de vida.
Antonio desejava com coragem uma transição com dignidade para si, mas acima de tudo para poupar os familiares.

Mas ainda haveria outra: Antonio me convidou e a um grupo de amigos para uma despedida no Clube Curitibano, seria na quarta feira antes da cirurgia marcada. Nos reunimos naquele que seria o último jantar. Ele não permitiu tocar no assunto. A ordem era alegria como um ritual  de passagem asiático ou mexicano,  com comida, música e bebida. 

Claro que nem todos resistiram. Vez por outra alguém saía da mesa e retornava com os olhos marejados. Antonio deixou a mesa farta, os amigos reunidos e saiu à francesa sem dizer boa-noite, sem dizer adeus.
Na tarde de sexta- feira liguei para o hospital assim que terminou a operação. O cirurgião que também era amigo deu a notícia esperada mas temida: ” Infelizmente perdemos o doutor Antônio, nada mais podia ser feito.”

Mesmo esperando o desfecho,  não contive as lágrimas, parte pela perda, parte pela grandeza na partida. Que lição meu Deus!

Semanas depois cumpri minha missão regularizando a previdência da família do meu amigo que corajosamente construiu sem apego e sem desespero aquilo que todos merecemos mas poucos conseguem: uma qualidade de morte.

Lembrei também de um costume italiano, uma frase de despedida dita pelos parentes que ficavam na Itália para os que emigravam para a América no século passado. Era dita com a certeza de que pelas dificuldades e a distância não haveria reencontro. Desejavam, inspirados nas orações cristãs a Virgem e ao menino Jesus, uma boa morte para os que partiam .


A Antonio não estava destinada uma boa morte se ele não tratasse de desafiar o destino e o tempo. Foi o que fez: tratou de quebrar a ampulheta e enquanto os grãos de areia escorriam pelas mãos esquálidas da velha senhora tratou de partir aliviado e liberto em busca de seus sonhos plenos de luz, de infinito e de eternidade.

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3 ideias sobre “Qualidade de morte

  1. Sociedade Responde

    Parabéns. Excelente texto e uma reflexão indispensável. Dr. Antonio era, sem dúvida, um espírito de luz!

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