8:46Palavras de Laurentino

Entrevista a José Carlos Fernandes publicada no jornal Gazeta do Povo

O jornalista José Laurentino Gomes, 58 anos, era ainda um “foca” – jargão destinado aos repórteres em cueiros – quando achou que sua carreira tinha naufragado antes de mesmo de engrenar. Empregado no hoje extinto Correio de Notícias, em Curitiba, ficou pasmo ao descobrir que uma matéria sua tinha sido modificada pelo publisher, sem pudores, de modo a favorecer um político.

Não deixou barato. Prendeu a versão impressa no mural da redação e, ao lado, uma cópia – em carbono – do que havia escrito. O sururu pegaria mal hoje. Em plena ditadura militar equivalia a uma declaração de guerrilha. Laurentino foi demitido, e por justa causa. Mas ao contrário do que imaginou, não só conseguiu um novo emprego – no jornal O Estado do Paraná – como firmou seu nome entre os mais importantes jornalistas de sua geração. Apenas na Editora Abril foram mais de duas décadas de serviços prestados, para desdém de quem o demitiu.

E era só o começo. Em 2007, o ao lançar o livro 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil sua trajetória deu mais uma cambalhota. A aceitação do público foi tamanha que dessa vez Laurentino é quem se demitiu. “Meu Deus, que dificuldade”, lembra ele, diante da escolha de Sofia – manter-se nas redações ou se entregar à pesquisa histórica. Ficou com a segunda opção.

Passados sete anos – e 1,7 milhão de livros vendidos – acha que fez a coisa certa: vê-se como um jornalista que escreve história. Com vantagens sobre quem o antecedeu no posto. Historiadores não escondem suas reservas com a presença dos jornalistas em sua seara. O gaúcho Eduardo Bueno, que antecedeu o paranaense no posto, que o diga. Mas não é seu caso. Lilia Schwarcz – autora do magnífico As barbas do imperador – é uma das sumidades que se renderam à prosa de Laurentino. A Academia Brasileira de Letras, igualmente.

Esta semana, o historiador e jornalista esteve em Curitiba para o Seminário Ler e Pensar, promovido pelo Instituto GRPCom. Emocionou-se ao falar para o público de quase 2 mil pessoas que lotaram o Grande Auditório Teatro Guaíra, no melhor do estilo à casa torna. “Não imaginava que um dia estaria nesse local, me dirigindo para tantos professores. Meu obrigado”, reconheceu, ao se despedir da plateia que o aplaudia. As razões estão nas páginas de 1808, 1822 e 1889 – os três livros com os quais o autor falou ao ouvido do Brasil. Confira trechos da entrevista.

Por que José Laurentino e não Antônio, João ou Pedro? Esse nome tem história?

[risos] Não sei de onde minha mãe tirou Laurentino. José vem do lado católico da família. Foi uma negociação: precisava ter o nome de um santo. Laurentino é do latim, algo como “uma coroa de louros na cabeça”. Quando o soldado voltava da guerra, entrava em Roma pela Via Laurentina. No Fórum, recebia uma láurea. É um nome meio perigoso. Atrai vaidade e orgulho. José serve de contraponto – por ser símbolo da humildade, um quase anônimo. Procuro transitar entre os dois. Nem tanto ao José nem tanto ao Laurentino.

Pelos cálculos, o menino Laurentino descobriu a leitura nas páginas da coleção Grandes vultos da nossa história, fascículos da Editora Abril… Correto?

Não… Nasci na roça. Meu pai era pequeno cafeicultor no distrito de Paiçandu, próximo a Maringá. Estudou muito pouco e vivia numa região isolada, sem livrarias, mas curiosamente valorizava a educação. Lia muito. Os livros eram emprestados pelo pároco. Uma das minhas lembranças mais remotas é de levar marmita para ele na lavoura de café. Ali, contava o que tinha lido. Sabia histórias do imperador Nero. Ouvi-lo narrando era um absoluto encantamento. Acredito que essa experiência me levou ao jornalismo e depois à História do Brasil.

A jornalista Eliane Brum (A vida que ninguém vê) diz que um trabalho só “acontece” quando ela sai modificada do que fez. Há outro Laurentino depois de 1808, 1822 e 1889?

Nos tempos de imprensa aqui em Curitiba eu fui colega da jornalista Teresa Urban. Eu era um foca – como se chama o repórter iniciante –, e ela disse uma frase que nunca esqueci: “O dia em que você perder a capacidade de se emocionar com as histórias que encontrar, acabou a profissão”. Levei ao pé da letra. O jornalismo é uma boa escola. A gente aprende para passar adiante o que aprendeu. Eu me envolvo muito com os personagens, do contrário escreveria algo frio e sem sabor. Um formador de opinião tem de contaminar os outros com a emoção dos fatos.

A edição 2012 da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostrou que os lemos menos, de forma fragmentada e que as crianças são menos influenciadas pelos pais – que são não leitores – e mais pelos professores. O retrato parece negativo, mas 1,7 milhão de pessoas compraram os livros de Laurentino Gomes. O diabo não é tão feio quando se pinta?

Penso que estamos numa fase de estima baixa. Mas do ponto de vista histórico as coisas não são tão ruins quanto parecem. O Brasil tem mais escolaridade, mais recursos, fez sua sétima eleição sem ruptura… São sonhos do passado, agora realizados. Não podemos cair nas armadilhas golpistas e nepotistas que pairam nas redes sociais.

Movimento semelhante acontece com a leitura. Se a gente pegar a época em que eu nasci, em 1956, 50% da população era analfabeta, estava isolada no campo, sem acesso à informação. As estatísticas dizem que o brasileiro mal lê um livro por ano, contra 30 na Alemanha. Mesmo assim, o mercado editorial cresce.

Admito que a pesquisa traz aspectos preocupantes: 70% dos não leitores nunca viram o pai e a mãe com o livro na mão. Cada vez mais a sociedade transfere para a escola a formação do leitor. Os pais estão trabalhando, não têm tempo para nada. A educação tem de resolver tudo, o que é uma situação disfuncional…

O conceito de História como “retrovisor” ainda faz algum sentido?

Digo que a história tem um papel social importante. Não pode se resumir à curiosidade. Serve para a construção de identidade. Se conhecemos nossas raízes, forças e fraquezas, nossos passivos históricos, nos preparamos para o futuro. Os brasileiros estão lendo mais história. Acompanham programas do gênero em canais de televisão, leem revistas… Estamos olhando para o passado de forma a entender o Brasil, tudo isso num momento particularíssimo…

“Particularíssimo”…

São 30 anjos de democracia. Buscamos o Brasil dos sonhos nas urnas, mas também na história. Queremos entender o que nos diferencia dos ingleses e dos japoneses, dissipar mitos, como a ilusão de que de repente vamos acordar e virar uma Suíça. O processo é mais lento. E somos diferentes da Alemanha. Não há passe de mágica. Temos problemas, como a corrupção, mas também recursos, a exemplo da nossa capacidade de manter a unidade territorial. E daí o povo fala em separação no Facebook [risos]. Mantivemos o Brasil grande, é uma virtude. O mesmo se diga da unidade em torno no idioma, a relativa tolerância racial e religiosa, tudo isso num mundo marcado pelo fundamentalismo. Temos uma contribuição para dar ao mundo.

1808, 1822, 1889. Em seus três livros você aponta que a maior fragilidade do Brasil foi a educação. Cabe para esse assunto um de seus impagáveis subtítulos, “como uma diretora idealista, um professor infeliz e um aluno gazeteiro melhoraram o ensino no Brasil”?

[risos] A educação no Brasil é uma história trágica. Quando a Corte chegou, mais de 90% da população era analfabeta. Temos de considerar que a pequena metrópole portuguesa ocupou um território 90 vezes maior que o seu. Para dar conta de tanta coisa, usou da concentração de terras, da escravidão e do analfabetismo. Havia censura, proibição para ler e publicar livros. Um feitor de escravos ganhava mais do que um professor. Quando a República chegou, em 1889, 81 anos depois, ainda havia 80% de analfabetos. A primeira universidade é de 1912, 90 anos depois da Independência, ocasião em que a América Espanhola já tinha 22 instituições de ensino superior. A falta de educação cumpre propósitos políticos, daí o clientelismo, o voto de cabresto, o coronelismo. Vejo nessa fatia uma história de heroísmo, feita por professores anônimos…

Nos anos 1990, Carla Camurati dirigiu a sátira Carlota Joaquina. Fez sucesso. A escola pode e deve usar de humor para ensinar a História do Brasil?

Digamos que é preciso uma certa leveza. Não se deve olhar o passado de forma sisuda. Antes de nós havia seres humanos parecidos com os de hoje, engraçados, com misérias, patifes… Tento o máximo tirar dos personagens o caráter mitológico. O dom João que tinha medo de caranguejos e de trovões era engraçado, mas não temos de ir além das banalidades. Dom João talvez seja nosso primeiro Macunaíma. Não era um grande intelectual, mas ao se deixar levar pelas circunstâncias ele muda a história do Brasil e de Portugal. É interessante observar o personagem pelo avesso.

Os portugueses não acharam muita graça dos seus livros. Como você lida com os patrícios?

Um grupo deve escrever a contestação a 1808. Mas até agora não sofri atentados nas ruas de Lisboa [risos]. Os portugueses estão lendo meus livros por razões opostas. Eles concordam que a vinda da Corte para cá foi um incômodo, pois a partir dali que o Brasil sedimentou sua independência. Vemos com simpatia o aspecto caricato de dom João, pintado como um bobão. Em Portugal é o contrário: a Corte no Rio de Janeiro deu fim ao Império Colonial Português. O Brasil era a joia da Coroa. Por uma defesa psicológica, em Portugal se estuda pouco o 1808, como se esse capítulo fosse parte da História do Brasil e não de Portugal. Os livros deles vão até as invasões napoleônicas, em 1807, e pulam para a Revolução Liberal do Porto, em 1821.

Sabemos de sua predileção por dom Pedro II e do reconhecimento que seu trabalho recebeu de experts no imperador, como José Murilo de Carvalho e Lilia Schwarcz. Dom Pedro pode nos ajudar a fazer as pazes com o passado?

Era uma figura encantadora, inclusive por sua tragédia pessoal. Foi deixado no Rio de Janeiro em 1831, com apenas 5 anos. A elite brasileira se encarrega de prepará-lo para o trono, como se fosse um órgão público. Mas era um órfão. É obrigado a assumir responsabilidades já aos 14 anos. Quando coroado, o cetro ultrapassava sua altura. Toda essa carência psicológica gerou um homem corpulento, mas de voz aflautada, adolescente. Tinha sonhos grandes para o Brasil. Ele sempre aparece nas fotografias como um intelectual circunspecto, na tentativa de projetar uma imagem do que o Brasil poderia ser, mas não era. O Império se apresentava ao mundo como um lugar sofisticado, parecido a Versalhes ou Viena, mas a realidade das ruas do Brasil mostrava que isso não passava de uma miragem. Mesmo assim, o imperador permanece como um farol poderoso, iluminando nosso escuro, mostrando que só a educação resolveria nossos problemas.

Colaboraram Ana Gabriela Simões Borges, Diego Antonelli, Fernanda Cotrim e Rafael Riva Finati

 

 

Compartilhe

3 ideias sobre “Palavras de Laurentino

  1. Parreiras Rodrigues

    Fui cicerone do Laurentino na Assembléia quando ele a cobria para o Estado. Lembro-me da sua serenidade Era também muito interrogativo, perspicaz e detalhista.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.