14:24A mentira como arte política

por Ivan Schmidt

Com todo o rigor de sua desenvoltura intelectual a filósofa judia Hannah Arendt escreveu no primeiro parágrafo do ensaio “Verdade e Política”, inserido no livro Entre o passado e o futuro (Editora Perspectiva, SP, 1972), que “jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão bem uma com a outra, e até hoje ninguém que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista”.

Mesmo estimulado por uma realidade diversa do atual contexto vivido no Brasil (a polêmica suscitada pela publicação de Eichmann em Jerusalém), a escorreita elaboração do pensamento político da autora parece se encaixar com perfeição à campanha presidencial nesse segundo turno.

Ao introduzir a discussão dos porquês da situação Hannah levanta questões pertinentes: “E o que isso significa, por um lado, para a natureza e dignidade do âmbito político e, por outro, para a natureza e dignidade da verdade e veracidade? É da essência mesma da verdade o ser impotente e da essência mesma do poder ser embusteiro?”.

Os ataques gratuitos e vizinhos do desespero que as equipes de marketing dos candidatos à presidência da República colocam diariamente nas emissões de rádio e televisão no horário eleitoral, e eles os recitam como papagaios, quase sempre desvinculados da verdade factual, passam ainda a presunção boçal de que ouvintes e telespectadores são vítimas da mais crassa idiotia.

A verdade é que as provocações começaram nos programas da candidata à reeleição, ocasionando nos últimos dias a reação tucana. O mesmo tom passou a se manifestar nos debates entre os candidatos, conforme se observou nos programas já realizados pelas redes Bandeirantes e SBT. Haverá, ainda, dois enfrentamentos televisivos dos candidatos (Record e Globo) antes da eleição e, a julgar pelo ânimo crescente da apontar o dedo na direção do oponente, a cara feia e a aura messiânica cuidadosamente calculada, sejam utilizados em grau máximo como últimos cartuchos dos marqueteiros que, afinal, precisam justificar as fortunas que estão levando.

No primeiro debate Dilma acusou Aécio de ter construído um aeroporto na fazenda de seu tio-avô, no município mineiro de Cláudio, assim como se referiu a parentes do então governador com empregos na administração estadual. No segundo debate (SBT), a presidente lembrou o caso da recusa de Aécio em submeter-se ao teste do bafômetro, no Rio de Janeiro, argumentando que alguém que age dessa forma não pode ser presidente da República.

Na resposta Aécio poderia ter dito, mas não o fez, que se é o caso de generalizar, Luiz Inácio também deveria ser dispensado do exercício da presidência, sobretudo depois que o correspondente do New York Times no Brasil escreveu uma reportagem dizendo claramente que o então presidente era “um pau d’água”. O rumor foi tão grande que o próprio Lula chegou a sugerir a expulsão do repórter do território brasileiro, embora convencido por assessores próximos a fazer de conta que não era com ele. Sobre nepotismo, Aécio respondeu que o irmão da presidente, Igor Rousseff, foi funcionário fantasma da prefeitura de Belo Horizonte na gestão de Fernando Pimentel, governador eleito de Minas Gerais.

Hannah Arendt escreveu, ainda, e suas palavras são estritamente adequadas ao  episódio eleitoral brasileiro, arrazoando que “as mentiras, visto serem amiúde utilizadas como substitutos de meios mais violentos, podem ser consideradas como instrumento relativamente inofensivo no arsenal da ação política”.

A filósofa revela sua inquietação pessoal e a busca por “descobrir que dano é o poder político capaz de infligir à verdade”, revelando investigar a matéria mais por razões políticas que filosóficas: “Por isso permitimo-nos desconsiderar a questão do que é a verdade, contentando-nos com tomar a palavra no sentido em que os homens comumente a entendem”.

E, com o objetivo de botar de vez a questão em pratos limpos, Hannah acrescentou o seguinte: “E se agora pensamos nas verdades modestas tais como o papel, durante a Revolução Russa, de um homem cujo nome era Leon Trotski, que não aparece em nenhum dos livros de história soviéticos – imediatamente tomamos consciência do quanto são mais vulneráveis do que todas as espécies de verdade racional juntas”.

O que, na verdade, queria dizer com isso? A resposta está nas linhas que seguem, nas quais constata (usando a linguagem de Hobbes) que “a dominação, quando ataca a verdade racional, como que exorbita seu domínio, ao passo que combate em seu próprio terreno ao falsificar ou negar fatos mentirosamente”.

O contrário da verdade, escreveu Hannah, “era a mera opinião equacionada com a ilusão; e foi esse degradamento da opinião o que conferiu ao conflito sua pungência política; pois é a opinião, e não a verdade, que pertence à classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder”. O ex-presidente norte-americano Madison dizia que “todo governo assenta-se sobre a opinião”, fato ampliado dessa forma pela consagrada intelectual: “E nem mesmo o mais autocrático tirano ou governante pode alçar-se algum dia ao poder, e muito menos conservá-lo, sem o apoio daqueles que têm modo de pensar análogo”.

Assim, toda pretensão a uma verdade absoluta cuja validade “não requeira apoio do lado da opinião, atinge na raiz mesma toda a política e todos os governos”, considerou Hannah, lembrando que o antagonismo entre verdade e opinião “foi elaborado por Platão (especialmente no Górgias) como o antagonismo entre a comunicação em forma de ‘diálogo’, que é o discurso adequado à verdade filosófica, e em forma de ‘retórica’, através da qual o demagogo, como hoje diríamos, persuade a multidão”.

Outra preciosidade do pensamento filosófico de Hannah Arendt, enunciada nos idos de 1954, quando escreveu o ensaio em foco, que 60 anos depois ainda assombra pelo sentido original, serve como uma luva confeccionada sob medida para um dos candidatos à presidência: “A razão humana, por ser falível, só pode funcionar se o homem pode fazer ‘uso público’ dela, e isso é verdadeiro, outrossim, para aqueles que, ainda em estado de ‘tutela’, sejam incapazes de usar suas mentes ‘sem a orientação de alguém’”.

Sem muito esforço percebe-se hoje na disputa eleitoral uma cópia quase idêntica da lúcida opinião da filósofa judia, ao apontar com toda a propriedade a infausta existência de personagens dos negócios humanos incapazes de raciocinar ou falar por si próprios.

Para não seguir castigando o leitor com a multiplicidade dos conceitos irrepreensíveis de uma pensadora altamente admirada nos meios cultos do Ocidente, seria bastante a transcrição de mais uma de suas iluminações: “Como o mentiroso é livre para moldar os seus ‘fatos’ adequando-os ao proveito e ao prazer, ou mesmo às melhores expectativas de sua audiência, o mais provável é que ele seja mais convincente do que o que diz a verdade”.

Estivesse o leitor num teatro ao final da peça, decerto perceberia o pano descendo lentamente.

 

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