14:51Os sonhadores

por Yuri Vasconcelos Silva 

Um arquiteto, um advogado ou qualquer outro profissional dito liberal apresentam pouca semelhança em suas respectivas especialidades. Exceto o fato de que parte deles enfrenta o inferno logo no início de suas carreiras.

Com a salutar busca de uma boa posição ainda em tempos universitários, são selecionados conforme o desempenho acadêmico para estagiar nos mais prestigiados escritórios. Uma vez dentro, a gaiola se fecha e sua liberdade passa para a mão de outro.

Primeiro porque não existe altruísmo dentro de uma sociedade limitada ou anônima. O aluno vai de fato aprender muito, às vezes até mais do que o lido e ouvido nas cadeiras da academia. Isso é louvável. Não se pode dizer, no entanto, que os dirigentes do escritório estão ali para ensinar. O que move o contrato entre aluno versus empresa é a simples busca pelo lucro. Não o do estagiário, claro, mas de alguns dentro do escritório. Executar tarefas de forma eficiente no menor tempo é meta esperada de todos os funcionários, estudantes e alguns sócios. Não há o que se condenar nesta valiosa lição, pois lucro no capitalismo é uma matéria oculta na maioria das universidades. Como se fosse bruxaria. O estranho é que os contratos celebrados entre as empresas e as respectivas faculdades caracterizam o estágio somente quando há de fato um caráter tutorial de complementação de ensino, sem existir qualquer tipo de exploração mercantil sobre o aluno. Tal documento nunca esteve tão fora da realidade. É sabido que estagiários passam noites e finais de semana trabalhando para cumprimento de datas de entrega de projetos – para que o escritório receba em dia. O estagiário ganha uma bolsa fixa por hora trabalhada e raramente recebe algum extra pelas noites em claro. A ilusão juvenil de estar participando de algo importante, comer uma pizza e beber uma coca-cola são suficientes para tamanha dedicação à firma numa madrugada de sábado. Manipular esta ingenuidade dos mais jovens, transmutando-os na mais barata mão de obra especializada disponível, é irresistível para um empresário que se vê afogado em encargos e impostos. Só que isso ainda é ilegal.

Segundo porque ao se formar, o jovem ainda sonhador teme pelo fantasma no fim da linha do curso superior: o desemprego. Este temor também é conhecido dos diretores da empresa e, outra vez, surge a oportunidade. Ao jovem temeroso é oferecida uma possibilidade que lhe cresce aos olhos e coração – exceto na mente, onde reside a razão. Ser um sócio da firma. Aos dirigentes cabe o papel de pintar tal quadro como a chance de uma vida. Uma honra sem limites. Resta ao recém formado pular sobre este cavalo encilhado sem titubear. O jovem vai trabalhar mais do que os outros e o máximo que vai ganhar é dar ordens em uma porção de estagiários vindouros, apenas para perpetuar o ciclo. Como sócio, não terá voz em decisões importantes, participação em lucros, acesso à conta bancária da firma, sua assinatura não terá valor algum nos papéis lindamente timbrados. Quando assinou o contrato, com o coração e o medo, o jovem não viu que o 0,004% da sociedade lhe dava direito somente a uma mesa e cadeira, um par de canetas Bic e um bloquinho de Post It.

Terceiro e definitivo, o jovem universitário se cria e cresce em na mesma empresa, e dezenas de anos depois, quando lhe restam apenas a razão, percebe que esteve preso a um jogo de sedução fajuto. Não tem FGTS, INSS, casa própria, viagem de férias todos os anos, um plano de saúde razoável, como seus outros poucos sócios, os donos do negócio, possuem.

Este é o jogo. Não se pode culpar exclusivamente os empresários, que precisam pagar dois funcionários para ter um trabalhando e outro no bolso do governo. Por outro lado, não seria justo responsabilizar unicamente a escolha que foi tomada pelo pequeno notável quando lhe foram dadas as opções: ou entra ou está fora.

Mesmo sendo de conhecimento de todos, do Ministério do Trabalho e da Justiça do Trabalho, poucos têm a coragem de se manifestar contra o esquema, pois a denúncia deve partir de dentro. Em especial, por medo de retaliações em forma do lendário desemprego pelo resto da vida. Ou por acreditar que tal esquema não seja danoso, pelo contrário, enaltece a fidelidade corporativa com recompensas a serem colhidas no futuro, através de promoções, ou as ilusões destas. Em qualquer dos casos, a Justiça Trabalhista e o Ministério do Trabalho devem fazer valer sua atribuição, desconstruindo este esquema de estágios e sociedades de fachada. Outra proposta na mesa seria alterar a lei trabalhista em prol dos empresários, permitindo a atuação de profissionais liberais dentro das empresas, com maior flexibilidade nas relações de negócios.

Seja qual for o caminho tomado, sair deste nevoeiro trabalhista que gera tensões silenciosas dentro das empresas é urgente. Não é possível continuar escondendo, atrás de retalhos de seda, este velho elefante branco na sala de reuniões.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

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Uma ideia sobre “Os sonhadores

  1. Professor Xavier

    Faço minhas as suas palavras, mas isto não ocorre em todas as profissões liberais não. Quando o profissional liberal é um técnico ou tecnólogo a coisa é bem diferente, é o mercado que precisa da expertise dele. Aí a coisa muda de figura, as regras são outras. Infelizmente ao maioria dos nossos filhos ainda se ilude com a beleza do diploma, todo rebuscado e emoldurado e pendurado na parede.

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