7:01Tegucigalpa

Theo_S_VB_22_setembro_14

Ilustração de Theo Szczpanski

por Rogério Pereira

O mundo cabe em nosso carro. Carregamos as histórias em meio ao trânsito lento. Ruidosos, as mochilas estufadas, eles estão entre as outras crianças. Cada um reage a sua maneira a minha chegada. Ela, com imperturbável falsa frieza. Ele, com seu amor desengonçado. Caminhamos os três até o estacionamento. Perguntas triviais guiam nossos passos. Uma curiosidade desponta em algumas conversas. A novidade é contada com intensa alegria. A vida se descortina às golfadas nas tardes em sala de aula. Jogo tudo no porta-malas. Eles se amontoam no banco traseiro. Tenho de levá-los para casa. O trajeto é curto, mas quase infinito no fim de tarde em que os carros nascem do asfalto.

Não me lembro de quem foi a ideia. Um dia, estávamos às voltas com a capital dos estados brasileiros. Logo, embrenhamo-nos pelo mundo. O Brasil se tornara pequeno para nós. Passamos a percorrer o atlas de ponta a ponta. Algo bastante simples. Eu pergunto, eles respondem. De início, as conhecidas. Capital da França? Os dois, num urro ancestral: Paris. Itália, Espanha e Inglaterra estão na lista das fáceis. Escócia, Islândia e Canadá, das difíceis. Há, entre ambos, a competição de quem acerta mais. Ou quem erra com mais graça. Quando não têm nem ideia, imploram uma pista. Assim, nasceu a capital da Bolívia: La mais o contrário de guerra. La Paz, os dois gritam no entusiasmo da descoberta. A capital do Uruguai é, para eles, Montevila. Não consigo demovê-los da criação. Em breve, pretendo retornar a Montevila. As capitais dos Estados Unidos e do Chile são nomes de homens.

A capital da Costa Rica, invento, é uma homenagem a um dos avós deles, meu pai. Eles gritam José. A capital da Costa Rica é José, papai? Sim, filhos, mas com um estranho San na frente. San José, papai. E pulam no banco traseiro como se o mundo realmente coubesse em nosso carro.

O pai me ensinou quase nada. Lembro pouco dele por perto. Sempre pelas encostas da família: no trabalho, no boteco, na cama a roncar o cansaço e os tragos do dia. Víamo-nos pouco. Conversávamos nenhuma palavra. De tempos em tempos, ele colocava uma cadeira nos fundos de casa e cortava o nosso cabelo. O corte bem rente para nos livrar por uns dias dos piolhos que nos infestavam a cabeça. Os fios ficavam algum tempo na superfície. Era a lembrança da presença do pai. Aos poucos, fundiam-se a terra. O pai logo desaparecia.

Ele não nos batia. Talvez porque não tivesse tempo para nós. A mão grossa e pesada da mãe invariavelmente encontrava a nossa pele fina e delicada. A irmã apanhava todos os dias. Não lembro por quê. Mas ela sempre levava tapas volumosos, barulhentos. E chorava muito. Nós, eu e o irmão, fugíamos pelo terreiro às gargalhadas. Ela sempre apanhava. Mesmo sem motivo. Acho que a mãe descontava na filha todo o desgosto da vida.

Quando a filha morreu, aos 27 anos, numa madrugada quente e silenciosa, a mãe ganiu feito animal ferido. Na sala de espera do hospital, encolhida num sofá, gritava pela filha morta. De longe, eu apenas ouvia, impontente diante do fim. Agora, penso que talvez chorasse todos os tapas que dera na filha, todas as surras represadas no corpo morto e frio. Chorou durante dias. Aos poucos, o grunhido indefeso arrefeceu a força, o jorro caudaloso da morte transformou-se numa lâmina fina aprisionada no interior da mãe.

Antes de enterrar a filha, o pai ficou pelos cantos em silêncio. Não tinha cabelos para cortar. Apenas uma filha para enfiar na gaveta de concreto do cemitério. Conversamos nada. Os três — eu, o irmão e o pai — ficamos quietos diante da casa de madeira. O dia clareava. Logo, iríamos ao cemitério. Depois, cada um tomaria o rumo de suas vidas solitárias.

Com o tempo, a distância do pai transformou-se em ódio. Agora, quando entro na metade final da vida, é apenas indiferença. A mãe morreu. O pai tem ainda alguns anos pela frente. Talvez um dia a indiferença se transforme em amor. Talvez, não.

Tegucigalpa é a capital de Honduras.

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