6:55Geografia de lugares santificados

por Ivan Schmidt

No dia 28 de outubro de 1954, há pouco menos de 60 anos e nove antes de morrer, Ernest Miller Hemingway (1899-1961), recebeu a notícia de que ganhara o Prêmio Nobel de Literatura concedido pela academia sueca. Era o sexto escritor norte-americano a ganhar o prêmio e a informação chegou a ele na residência que havia comprado em Cuba, onde passou muitos anos.

O reconhecimento da academia pela obra de um extraordinário, polêmico, controvertido, adorado e odiado escritor do século passado, veio com a novela O velho e o mar (1952), que imediatamente após o lançamento recebeu o Pulitzer. Dois anos depois, finalmente Hemingway foi distinguido com a láurea máxima da literatura mundial, exatamente ele que sempre se referira com desprezo e estudada ironia aos métodos habituais da academia para chegar aos ganhadores do Nobel, não raro se referindo ao prêmio como “aquela coisa sueca”.

Em recuperação de graves ferimentos contraídos na queda do avião em que viajava no interior da África, meses antes, Hemingway não pode comparecer pessoalmente à cerimônia de entrega do prêmio em Estocolmo no mês de dezembro de 1954. No entanto, escreveu um discurso de sete parágrafos lido pelo embaixador dos Estados Unidos na Suécia, em cuja abertura se referiu a um traço não muito visível no seu cotidiano, a humildade.

Hemingway escreveu: “Nenhum escritor que conheça os grandes escritores que não receberam este prêmio poderá aceitá-lo com qualquer sentimento que não seja a humildade”, acrescentando que “há coisas que talvez não sejam imediatamente discerníveis naquilo que um homem escreve e, nisso, por vezes, ele tem sorte, mas essas coisas acabam por se tornar claras, e é por essas coisas e pelo grau de alquimia que possui que ele perdurará ou será esquecido”.

“Na realidade, cada novo livro, para um verdadeiro escritor, deveria ser um novo começo em que ele procura alcançar de novo algo que está fora de seu alcance. O escritor deveria tentar sempre algo que jamais foi feito ou que outros tentaram e falharam. Então, por vezes, com muita sorte, ele terá sucesso”, disse também.

E essa consciência do novo a cada livro é uma presença cumulativa no conjunto da obra realizada por Hemingway, desde sua estréia em 1926 com O sol também se levanta, um belo romance ambientado na cidade de Pamplona, no norte da Espanha, com o tecido ficcional vivido na histórica festa de San Fermin, ao mesmo tempo pagã e religiosa, quando touros bravos são soltos pelas ruas em meio à multidão ensandecida até chegarem todos – feras e humanos — à arena. O candidato a escritor sempre em busca de emoções violentas, desde a primeira vez que esteve em Pamplona (onde voltou inúmeras vezes) apaixonou-se pelas touradas, tornando-se íntimo de famosos matadores espanhóis, que à época eram tão ou mais populares que muitos craques de futebol ou astros da televisão hoje em dia.

Em 1929 foi publicado o romance Adeus às armas, no qual Hemingway historiou a curta experiência que teve como voluntário da Cruz Vermelha dos Estados Unidos na 1ª Guerra Mundial. Aos 19 anos, Hemingway viajou para a Itália e foi destacado pelo comando norte-americano como motorista de ambulâncias, percorrendo também as trincheiras a fim de distribuir aos soldados italianos doces, cigarros e bebidas. Numa dessas ocasiões foi ferido gravemente pelo estilhaço de um morteiro, no momento em que tentava carregar sobre os ombros para a retaguarda um italiano ferido em combate.

A tragédia da guerra é o pano de fundo do romance, resumido pelo autor como uma espécie de jogo em que os soldados eram atirados: “Lançavam-nos no jogo, dizendo-nos quais eram as regras e, da primeira vez que nos encontravam fora do lugar, matavam-nos”.

A paixão irreprimível pela tourada e as muitas vezes que viajou pela Espanha, depois da guerra, a fim de acompanhar como fanático aficionado a sequência da temporada nos principais centros de tauromaquia, rendeu o livro Morte na tarde (1932), descrição minuciosa e abrangente, incluindo o glossário de termos típicos do esporte, além de revelações propiciadas pela proximidade mantida durante anos com ovacionados toureiros da estirpe de Juan Belmonte, Maera, Ordoñez e outros. Na verdade, o livro foi concluído em etapas esporádicas, sem prejuízo dos textos especificamente escritos para revistas e jornais entre os outonos de 1929 e 1932, muitos dos quais foram mais tarde apareceram também em livros diversos.

Na apreciação de Carlos Baker, autor de Hemingway, o escritor como artista (Civilização Brasileira, RJ, 1974), por muitos considerada a melhor biografia literária até hoje escrita sobre Ernest, “tratava-se, principalmente, de um guia das corridas de touros e procurava fazer em prosa gráfica o mesmo que ‘Tauromaquia’ de Goya conseguira fazer na tela. Todavia o livro também foi empreendido como uma súmula preliminar de dez anos de experiência intermitente com a terra espanhola e o povo que vivia nela”. Em 1935 saiu As verdes colinas da África, livro de não ficção sobre os safáris que empreendeu na África guiado pelo experimentado caçador inglês Philip Percival.

O grande romance que veio a seguir, em 1940, foi Por quem os sinos dobram, no qual Hemingway descreve a guerra civil espanhola transpondo para a linguagem da ficção toda a intensidade dramática do conflito entre irmãos, a partir da vivência de um grupo de revolucionários chefiado pelo rude Pablo.

Finalmente em 1952, embora não fosse o último romance do autor, mas o que lhe renderia o Nobel dois anos depois, a revista Life publicou a íntegra de O velho e o mar com tiragem superior a cinco milhões de exemplares. Nessa narrativa essencialmente marcada pelo drama, Hemingway conta a melhor das histórias de vida de Santiago, velho e pobre pescador cubano que uma vez saiu em seu barco a pescar nas águas profundas da corrente do golfo.

Essa foi outra faceta deslumbrante da vida do escritor na ilha de Cuba, onde sua amada Finca Vigia foi transformada pelo governo de Fidel Castro em museu e local de visitação pública. Na temporada cubana, a bordo do Pilar, iate comprado com a renda dos livros anteriores, Hemingway pescava espadartes e tubarões, levando às vezes consigo os amigos mais chegados, que não eram poucos. Certa vez chegou a passar cem dias ininterruptos em alto mar.

Na novela, Santiago passa dois ou três dias no mar e acaba fisgando um gigantesco espadarte, que mesmo preso ao anzol mergulha para as profundezas arrastando o barco, obrigando o pescador a um esforço inaudito para não perdê-lo. Depois de lutar dia e noite contra o peixe formidável, Santiago consegue puxá-lo para perto do barco abatendo-o com o arpão. Não conseguindo içá-lo para dentro do barco por causa do peso descomunal, Santiago amarra o peixe no costado aproando na direção da terra.

Agora a luta do pescador passou a ser travada contra os tubarões esfomeados logo atraídos pelo precioso tesouro. Totalmente impotente para espantá-los, aos poucos Santiago via desesperado a carne do espadarte ser abocanhada por outros monstros marinhos, até restar o esqueleto, a cabeça e a enorme cauda em forma de vela.

Foi assim que Santiago encostou o barco no molhe. Sem nada e tão pobre quanto havia saído para o mar. Isso rendeu a frase imortal: “Um homem pode ser destruído, mas nunca vencido”.

Em 1991, Jorge Zahar Editor lançou no Brasil o importante livro escrito pelo crítico Malcolm Bradbury – O romance americano moderno – onde se lê que o mundo de Hemingway pressupõe o cruzamento de emoções românticas e dores ocultas, portanto, um mundo específico, exato e exclusivo. Algo descrito como uma “geografia de lugares santificados, bebidas especiais, armas e varas de pescar, seus próprios modos realistas de falar”.

Sobre esse terreno, segundo Bradbury, “movendo-se com igual solidez e economia seletiva, como seu locatário apropriado, caminha o herói específico de Hemingway, cruzando seu perigoso e perturbado latifúndio com certo ar de à vontade e conforto que cobre, mas não esconde inteiramente o que está por trás: a tensão, a insônia, as feridas, a dor, o pesadelo moderno”.

Numa referência direta à novela O velho e o mar, Bradbury percebe que “sua mensagem essencial de resistência, sua afirmação de que o homem pode ser destruído porém não derrotado se conquistar sua própria humanidade, responde a tudo isso; trata-se de um romance naturalista com uma solução humanista, forças da própria erosão, quando ele luta primeiro com um marlim gigante, que domina e captura, e depois com os tubarões predadores que reduzem seu prêmio a um esqueleto que mesmo assim ele traz de volta para o porto. O modo é simples e épico, um método de alegoria simbólica com fortes alusões cristãs; sua lição parece muito distante dos antigos tons niilistas de Hemingway, porém estava implícita neles; seu mito de heroísmo, humildade, assim como as virtudes morais da capacidade para resistir sem dúvida ajudaram Hemingway a ganhar em 1954 o Prêmio Nobel de Literatura”.

 

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3 ideias sobre “Geografia de lugares santificados

  1. Bittencourt

    Zé: as análises e comentários do velho parceiro Ivan Schmidt só engrandecem o teu espaço. Mas sou suspeito, afinal, sou fã de vocês dois. Juntando mais o velho Célio Heitor, então, dá até a impressão de que estamos de volta às redações nas quais a gente tinha que saber escrever, um pouco, e que depois era torneado no dia a dia com bons mestres.
    Hoje temos poucos mestres e aprendizes menos preparados. Tomara que leiam – entre vírgulas e pontos, as análises como a deste danado – que como sempre digo, com a mão no teclado vaza talento por baixo das unhas.
    Abraços,
    Bitte

  2. Célio Heitor Guimarães

    Obrigado pela citação, grande Bitte. Mas alinhar-me com o mestre Ivan é um baita exagero de sua parte. Abraço.

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