Do blog Cabeça de Pedra
Os óculos eram do tipo dobrável. Escuro. Achou-os por acaso num canteiro de avenida. Não viu ninguém por perto. Pegou, levou para casa, lavou, desinfetou e colocou no rosto na primeira manhã de sol. Nunca mais os tirou – nem para dormir. Se quisesse, como tentou, não conseguiria. Mas, para que tentar? Ao colocar aquela armação com lentes negras passou a enxergar o que jamais tinha prestado atenção. Os olhos das pessoas, conhecidas ou não. Antes, tinha medo. Agora, não precisava, mesmo porque ninguém via os seus. Mas ao olhar os outros ele via além, conseguia distinguir entre os bons e maus. Os maus, descobriu logo, não revelavam o interior da alma. Os outros, sim. Como? Pelo brilho. Os olhos destes pareciam sorrir, se é que é possível. Ele também começou prestar atenção nos detalhes de tudo quanto a natureza oferecia, mesmo numa cidade grande. Por isso deu de cantar feliz por onde andava. Até o dia em que alguém achou que ele estava de gozação. Um taco de beisebol apareceu e a pancada foi forte o suficiente para fazê-lo desmaiar e quebrar a armação e as lentes. Quando acordou, estava num quarto de hospital. Via tudo cinza. Saiu dali do mesmo jeito. Perdeu a vontade de viver. Mas segurou o tranco. Agora passa o dia procurando outros óculos iguais. Acham que pirou.