6:35Uma história sem fim (2)

por Ivan Schmidt

Volto ao tema da semana passada (escrevo na quarta, 6) fazendo votos de que a trégua na Faixa de Gaza forçada pela reação internacional se transforme num cessar-fogo definitivo e dê ensejo, além disso, a uma ampla negociação convocada pelas grandes potências selando a paz e a criação do estado soberano da Palestina.

Mesmo considerando o direito de Israel de defender seu território contra os ataques desferidos pelo Hamas desde a Faixa de Gaza, o poder de fogo para retaliar o inimigo foi tão desproporcional (é a palavra do momento), que Israel passou a atrair a atenção dos países desenvolvidos, unânimes em condenar a virulência dos bombardeios que vitimaram, em maioria, a população civil de idosos, mulheres e crianças. Do lado israelense morreram menos de 100 soldados e apenas três civis, aliás, o motivo do início da guerra.

Um dos apelos mais veementes em favor da paz partiu do presidente François Hollande, da França, que condenou a violência desenfreada de Israel, sem minimizar o peso da responsabilidade do próprio Hamas, que para dar de barato meteu-se a cutucar a onça com vara curta e se deu mal.

O diplomata espanhol Ignacio Rupérez, em artigo publicado no El País no último dia 3, fez considerações sobre o clima de permanente conflito entre israelitas e palestinos, salientando ser “impossível encontrar neste mundo outro pedaço de chão com tanto sofrimento por habitante e por metro quadrado como Gaza, ainda que se trate de uma área de apenas 360 quilômetros quadrados, com no máximo 10 quilômetros de largura, que abriga 1,8 milhão de habitantes”.

Rupérez acrescentou que “Gaza é o testemunho mais vivo da permanência e intensificação do drama humano e do risco político começados em 1948 com a divisão da Palestina” assinalando que “tantos conflitos e tantos refugiados, a maré de violência, contudo, chegaram a convencer de que ali não há nada a fazer, paragem irremissivelmente maldita já desde os tempos bíblicos”.

Um dos ângulos assimétricos da problemática na visão do diplomata é que “nem o Egito, nem a Jordânia assumiram a administração do território, ou acolheram seus refugiados, cujo único meio de vida praticamente consiste em fornecer mão de obra abundante e barata para o mercado israelense”, e ainda que “o isolamento do território e da população de Gaza aumentou desde a vitória do Hamas nas urnas, em 2006, e seu confronto com o Al Fatah”.

Também é oportuno avaliar o ponto de vista exposto por Rupérez quanto à percepção generalizada da população israelita de que o conflito atual foi exacerbado pelo entrechoque de “poderosas forças radicais, messiânicas, xenófobas, racistas e ultranacionalistas” que “alcançaram lugares proeminentes na política nacional, bem como na polêmica ancestral sobre a identidade e o sentido de Israel como nação”.

A guerra em Gaza, “a atual, a anterior e a próxima”, segundo o diplomata, “não eliminará a presença do Hamas, qualquer que seja o seu nome, nem as grandes carências da Faixa, nem as aspirações de reconciliação com o Al Fatah”.

O conflito racial entre árabes e israelitas arrasta-se desde épocas imemoriais, mais propriamente após o nascimento dos dois filhos do patriarca bíblico Abraão, Ismael e Isaque, sendo eles historicamente os formadores de ambos os povos. É escusado lembrar também que esse sentimento de animosidade se robusteceu desde a diáspora judaica iniciada no ano 70 d.C. com a destruição de Jerusalém pelas legiões romanas comandadas pelo general Tito. Não há espaço, porém, nem paciência do leitor, para seguir incursionando pelos relatos históricos com a profundidade necessária.

Fiquemos com o que está mais próximo do nosso tempo, sabendo de antemão que as controvérsias atingiram escala inimaginável. Por exemplo, Edward Said, importante estudioso da questão no livro Orientalismo (Cia. das Letras, SP, 2007), adverte que “seria fora de lugar discutir neste ponto toda a história labiríntica e profundamente controversa do Oriente Próximo no início do século 20, quando seu destino estava sendo decidido pelas Potências, as dinastias nativas, os vários partidos e movimentos nacionalistas, os sionistas”.

Britânicos e franceses, diz ele, viam o Oriente como unidade geográfica, cultural, política, demográfica, sociológica e histórica, “sobre cujo destino eles acreditavam possuir um direito tradicional”.

Said se referiu ainda aparecimento de inúmeros centros de estudos e pesquisas acadêmicas sobre a região, tais como a American Oriental Society, o Middle East Studies Association, a Fundação Ford, a Corporação Rand e o Instituto Hudson, “bem como os aparelhos consultivos e lobistas de bancos, companhias petrolíferas, multinacionais e outros órgãos semelhantes”.

Um desses estudos foi produzido por Gustave Von Grunebaum, que partiu para os Estados Unidos no bojo da imigração de eruditos europeus que fugiam do fascismo, para mais tarde assumir uma cátedra na Universidade da Califórnia. Dedicado ao estudo do orientalismo, Grunebaum nunca dissimulou, segundo Said, sua aversão ao islamismo: “Ele não tem dificuldade em presumir que o islã é um fenômeno unitário, diferente de qualquer outra religião ou civilização, e desse ponto em diante mostra que o Islã é anti-humano, incapaz de desenvolvimento, autoconhecimento ou objetividade, além de ser não criativo, não científico e autoritário”.

Said conclui que “o resultado final é uma visão histórica do islã inteiramente obstruída pela noção de uma cultura incapaz de analisar ou fazer justiça à sua própria realidade existencial na experiência de seus adeptos. O islã de Grunebaum é afinal o islã dos primeiros orientalistas europeus – monolítico, desdenhoso da experiência humana, comum, grosseiro, redutor, imutável”, reforçando, no entanto, que “no fundo, essa visão do Islã é política, sem fumos de imparcialidade”.

Professor de filosofia no City College de Nova York, Lou Marinoff é autor do livro Mais Platão e menos Prozac, vendido em mais de 75 países com enorme sucesso. Em outro livro não menos importante publicado no Brasil pela Record em 2008, O caminho do meio, ele produziu uma síntese do pensamento de Aristóteles, Buda e Confúcio, cujo amálgama é o ensinamento de como eliminar o sofrimento desnecessário e, ao mesmo tempo, alcançar o equilíbrio social.

Ao abordar a questão dos extremos, incluindo em seu alentado estudo o Oriente Médio, Marinoff apresenta aos leitores a visão pessoal das causas do episódio do 11 de Setembro, pontuando que “o Ocidente deu um lar ao islã, assim como fez com incontáveis povos de inumeráveis culturas. A maioria dos americanos comuns – e com relação a isto, a maioria dos judeus e israelenses – não odeia árabes ou muçulmanos. Ao contrário, muçulmanos são bem-vindos como qualquer outra pessoa. Quando será que universidades islâmicas aceitarão doações ocidentais de fontes não-islâmicas para construírem centros, criarem cátedras e financiarem programas para o estudo da civilização ocidental?”.

Entre outras ponderações, Marinoff argumenta que os muçulmanos que foram para os Estados Unidos e Canadá, por exemplo, “vivem muito melhor no que resta do Ocidente livre do que seus irmãos do ‘mundo árabe’ e outras nações islâmicas em desenvolvimento e porque entendem que uma das fontes para seu progresso é a tolerância. Agora que as coisas estão fora de controle, árabes-americanos moderados estão acordando para suas próprias responsabilidades, as quais incluem a defesa do Ocidente, que propiciou sua liberdade, sua oportunidade e sua esperança não somente para florescerem e prosperarem como muçulmanos, mas também para viverem em paz com não-muçulmanos”.

É bom sublinhar a essa altura que os enfoques de Marinoff são estritamente pessoais, embora altamente verossímeis. Diz ele que “um número demasiadamente grande de árabes esqueceu, por muito tempo, que os judeus são seus primos e que sofreram terríveis perseguições, intermitentemente, durante séculos a fio por toda a Europa. O racismo europeu que os árabes estão encontrando agora em suas próprias terras de adoção não apresenta nada de novo. O anti-semitismo virulento que assombrou a civilização européia por dois milênios é tão prontamente direcionado contra árabes quanto contra os judeus”.

“Islamitas radicais representam apenas uma fração pequena do mundo dos muçulmanos, cuja maioria provavelmente está disposta a viver em paz tanto uns com os outros quanto com a aldeia global”, escreveu Marinoff admoestando que “muitas nações muçulmanas são, entretanto, violentamente fanatizadas por déspotas beligerantes, imãs vituperantes e imprensa incendiária”.

Todas essas coisas não são imaginárias e tampouco consistem numa posição discricionária ou preconceituosa. O filósofo acerta igualmente ao ponderar que “de uma perspectiva ocidental, o extremismo islâmico é a antítese da globalização: ele procura manter seus povos em estados retrógrados de intolerância, beligerância, atraso e isolamento”, concedendo que “isto é mais ou menos como a Europa parecia quando foi aterrorizada por fanáticos cristãos, com a cumplicidade de monarcas, antes da revolução científica e do Iluminismo”.

Hoje é sexta-feira, dia dedicado à meditação e recolhimento pelos crentes em Alá.  Amanhã é o shabbat dos judeus e domingo, o dia dos cristãos. Que excelente oportunidade para que os amantes da paz de todo o mundo celebrem de mãos dadas. Amém.

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4 ideias sobre “Uma história sem fim (2)

  1. Ivan Schmidt

    Minutos depois do encerramento das 72 horas de trégua, na manhã dessa sexta-feira, foguetes do Hamas foram disparados de Gaza e imediata a retaliação vinda de Israel. Para usar uma linguagem apocaliptica, a mais adequada para uma situação como essa, Gaza se transformou, com certeza, “na abominação da desolação”…

  2. antonio carlos

    Não sou evangélico por isto não faço citações bíblicas, mas por hoje ser sexta-feira vou abrir uma exceção, quem com ferro fere com ferro será ferido. Simplificando, o Hamas ataca com foguete e o vizinho responde com bombas, neste caso muito mais precisas e mais destruidoras. Isto pode ser classificado como uso desproporcional da força? Claro que não, eles só usam o que tem em estoque.

  3. Ivan Schmidt

    Pois é, mas no balanço da guerra que a imprensa publicou hoje, no cômputo geral das mortes na Faixa de Gaza, apenas uma minoria é de militantes do Hamas… o fato confirma a especulação de muitos quanto ao Hamas utilizar a população civil como escudo…

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