6:51O velho e a cidade

por Yuri Vasconcelos Silva

Ângelo é um velho ranzinza dos olhos azuis que entregam sua ascendência. Vive em Curitiba desde nove do nove de trinta e três. Vai para tudo que é lugar sozinho, desde que seja a pé, em passos hesitantes, ou de ônibus sem pagar a passagem. Sempre que retorna para sua casa de madeira com lambrequim bem trabalhado, uma das poucas ainda existentes no centro, olha para a fotografia de sua querida mulher e repete: ”Isso aqui tá tão diferente”. Suspira. Ele se refere à cidade.

Hoje saiu cedo. O homem não dorme mais que 3 horas por noite. Caminhando até a padaria que já subira sua estridente porta metálica, flagra uns moleques pichando a fachada cega de uma casa. Tsc..tsc.. fez ele. Voltando para casa, a luz do sol nascente clareou mais que o normal um painel do artista Poty em uma fachada inútil de um edifício. Ele parou para recuperar o fôlego e admirar com um sorriso aquela luz diferente. Depois do café, retornou à rua para visitar um amigo no edifício Tijucas. Aguardou o boneco verde que sinaliza o direito do pedestre caminhar sobre a faixa de segurança. Mesmo com todos os carros parados, Ângelo foi salvo por uma mão estranha que lhe puxou à calçada novamente, evitando ser atropelado por um ciclista. Resmungou rouco algo que dizia mais ou menos isso: “Exigem direitos mas não sabem respeitar faixa, semáforos e pessoas, seus mentecaptos!” Prosseguiu até a Confeitaria das Famílias e pediu algumas madrilenas. A placa, o interior, o cheiro. Tudo igual, como ontem. Depois da visita, andou com olhar cabisbaixo, pensando em algo insondável a quem estivesse de fora. Ele fitava as pedras disformes brancas e pretas que juntas desenhavam um mosaico, nítido para quem do alto de uma janela de prédio olha para baixo. Mosaico português para os outros, para nós é petit pavet!, resmungou mais uma vez, sozinho, quando pisou no bloco de concreto, o novo padrão de calçada. Liso, não escorrega, mas sem significado ou história. “Imagine se decidem trocar a calçada de Copacabana por este troço”. Entrou no ônibus pela porta de trás. Relativamente vazio, lugar para sentar, vai ligeiro na rua só dele. Lembrou uma vez, uma década atrás, quando foi visitar um filho e netos em São Paulo e teve de pegar um “coletivo”, como chamam. Sempre pensa nisso quando entra num aqui, para sentir o conforto egoísta de que “não é tão bom, mas tem coisa muita pior”.

Chegou ao cemitério e balançou a cabeça, numa desaprovação que se repete semana a semana. A entrada, tão linda e singela como era, transformada sem necessidade em outras formas e cores de inspiração mexicana. Ele passou com passos ligeiros pelo acesso. Lá dentro o silêncio, as árvores, o céu estavam iguais. Suspirou feliz e chegou tranquilo na pedra com a foto e nome de sua companheira. Tirou do bolso uma madrilena e ofereceu para ela. Desejou que o tempo retornasse para eles e para a cidade. Duas horas depois, sabendo que o tempo não volta e tudo se desintegra num caos crescente, se levantou e  retornou para a casa. Resmungando.

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