7:37Bala perdida e um brasileiro de bermuda e chinelo

Na hora você não pensa em nada não/Depois fica lembrando e se perguntando por que/Ela quase lhe levou/Chegou perto de ser dela, mas ela não lhe achou/Não lhe achou/ Bala perdida, você quase me levou/E eu sem saber, e eu sem saber…

Ao contrário da letra da música do novo disco da Nação Zumbi, a melhor banda de rock deste país, ela, sim, me pegou, me pega todo dia das mais variadas formas, seja disparada na madrugada pela tela da TV ou no jardim da casa, nas primeiras horas geladas do dia, quando o jornal impresso voa da mão do entregador dentro de um saco de plástico fino. Às vezes segue a mesma trajetória, pois a informação se repete, mudando apenas os nomes dos crápulas, dos ladrões do dinheiro público, dos assassinos de inocentes, sejam eles aqueles fardados, os que colocaram filhos no mundo para depois se livrar como se fossem incômodos, os que ateiam fogo naqueles que abandonaram tudo e moram nas ruas, os que se matam há séculos por heranças de bens, de território ou por achar que a fé que professam é melhor que a do vizinho.

Essas são as “comuns”, do cotidiano cada vez mais servido pela velocidade da informação, que chega no bolso com a chamada desses aparelhinhos que se transformaram em praga mundial e que grudam nos olhos dos abduzidos. Mas há balas que ferem a alma porque anunciam as partidas daqueles que um dia entraram em nossas vidas com a abertura dos livros que escreveram e aí iluminaram o caminho, este que é um cipoal exatamente para que a gente faça um esforço para a compreensão, da nossa alma, do lugar onde estamos, do nosso povo, este mesmo, brasileiro sim senhor.

Poucos são esses abençoados que, pelo menos para alguns, os arrancaram da bovinidade do pasto que mantém a idiotice generalizada e passível de rajadas de tiros na brincadeira dos que estão no terraço da cobertura se fartando e rindo de tudo. Um dia, na costa da ilha de Itaparica, saltei da escuna que ali me levou e fui nadando até a praia. O que me levou ao mergulho precipitado, penso hoje, talvez fosse a vontade de lavar a alma de tanta coisa que já tinha visto de ruim neste país e ter mais conhecimento das suas entranhas – porque ali, naquele ilha, nasceu quem conseguiu mostrar isso de uma forma tão avassaladora, tão perturbadora e esclarecedora, que, quem sabe…

A bala perdida que me explodiu na sexta-feira de manhã era a da morte de João Ubaldo Ribeiro, a quem tive o prazer de conhecer há pouco tempo no Teatro Paiol e registrar o encontro numa foto feita pouco antes de eu apenas falar que tinha origem na terra de Graciliano Ramos, outro dos monstros sagrados da literatura brasileira. Ubaldo é contemporâneo de Glauber Rocha, com quem estudou – e se este era energia explícita, a daquele era contida na fala de voz cavernosa, mas explosiva no que escrevia, seja demonstrando sua indignação com o que acontecia, acontece e acontecerá neste país desvairado, seja nos livros que nos presenteou com sua generosidade.

Como todo gênio, era ele mesmo, de bermuda, chinelos de dedos e, como escreveu Mario Prata, adorava falar merda quando se encontrava com este outro escritor, nada de conversa chata sobre literatura. João Ubaldo Ribeiro fazia literatura e a melhor definição deste seu modo de desmistificar o escritor que paira sobre tudo e todos foi a maneira como escreveu Viva o Povo: “O editor pediu para eu escrever um livro grosso. Escrevi”.

João Ubaldo teve problemas com o álcool. Conseguiu parar muitas vezes e, ao que se sabe, nos últimos tempos só tomava alguma coisa no final de semana. Mas o vício do cigarro nunca deixou. Sofria, com certeza, da dor da alma, mas era muito bem humorado e resumiu assim como lidava com isso: numa festa, ao pedir um cigarro para um amigo quando estava trabalhando na Copa do Mundo dos Estados Unidos, foi fumar atrás de uma árvore no quintal; ao voltar, o amigo perguntou de quem ele estava se escondendo, pois ali só havia estrangeiros. “De mim mesmo”, respondeu Ubaldo.

Contei essa história para dependentes de todas as drogas que estão internados numa clínica onde sou voluntário. Esse tiro certeiro de João Ubaldo, quem sabe, não vá salvar uma vida? Fugimos de nós mesmos e, às vezes, qualquer substância entra para tapar o buraco que ninguém sabe como foi parar lá. E o que ela faz, a droga, é só alargá-lo mais. João Ubaldo não morreu. Deixou a obra, seus livros, que são seus filhos que se proliferam com a divulgação de quem os lê. Balas que não são perdidas, mas traçadas para iluminar um pouco nossas trevas.

*Publicado no site A Gralha (www.agralha.com.br)

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