6:37Bolsa-Magistratura

por Célio Heitor Guimarães

Assisto à batalha da ilustre magistratura por mais um punhado de dinheiro e olho orgulhoso para a minha mulher, uma modesta guerreira que passou a vida dedicando-se ao magistério. Alfabetizou e educou milhares de pequeninos, muitos dos quais agora são doutores, desembargadores, juízes de direito, médicos, engenheiros, jornalistas ou simplesmente trabalhadores e cidadãos de bem. Por tudo isso, ela recebe hoje uma remuneração líquida de R$ 1.230 por mês. Cansou de levar de casa o giz necessário para as lições no quadro negro. A escola não tinha e o governo demorava para dar. Nunca teve auxílio-transporte, auxílio-refeição, auxílio-guarda-pó, auxílio-livro e, muito menos, auxílio-moradia. Nunca recebeu terço de férias ou outros benefícios acessórios, a não ser adicionais por tempo de serviço, que era (como continua sendo) considerado salário, sujeito a descontos de previdência e imposto de renda. Quase uma menina, mas cheia de sonhos, tomava um ônibus às 7h da manhã para ir lecionar na Vila Lindóia, então um mundão de longe. Na hora do almoço, fazia o trajeto da volta do mesmo jeito. O resto do caminho cumpria a pé. Tem muito orgulho de sua carreira e, certamente, não a trocaria por nada neste mundo. Era a sua vocação e, portanto, a sua vida. Mas está recebendo uma retribuição que não chega aos R$ 1.500. A moça que trabalha aqui em casa, como doméstica, ganha mais do que isso, sem demérito a ela.

Por isso, fico pasmo quando vejo magistrados, homens de bem, cultos, trabalhadores cumpridores dos seus deveres, de cujo saber e julgamento nós, cidadãos comuns, dependemos, ficar lutando por vantagens que para eles são migalhas – mas que têm bom resultado pelo efeito retroativo do pagamento e o caráter indenizatório, que os livra da previdência, do imposto de renda e do limite salarial constitucional – e tanto os desgastam perante a opinião pública.

Magistrados são figuras importantes na sociedade. Indispensáveis, diria até, pois representam o equilíbrio. É através deles que vêm a ordem social e a justiça. Não podem, assim, com a devida vênia, atuar como sindicalistas, pressionando autoridades por benefícios pessoais a latere, pois, mais do que ninguém, sabem que nem tudo o que é legal é ético, moral ou aceitável.

Estive, a maior parte da minha vida, dentro do Judiciário. Não como homem de toga – usava, quando muito, beca –, mas como assessor do Poder. Quer dizer, aquela gente miúda que, na verdade, oferece condições para o magistrado trabalhar e o Judiciário funcionar. Tive uma vida honrada lá dentro e sei como as coisas funcionam. Mas isso não vem ao caso agora.

O que preciso dizer, como cidadão e contribuinte, é que a magistratura merece ganhar bem. Um salário que lhe permita viver com dignidade, cumprir a sua missão com honra, independência e tranquilidade. O limite oficial bruto federal de R$ 29.462 é pouco. Claro que será muito, muitíssimo, se comparado com o salário de um operário, mas, por favor, não sejamos hipócritas. Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. Aplicados os descontos, nenhum juiz viverá com honra, independência e tranquilidade em Brasília com esse salário, se não tiver outra fonte de rendimento permitida. Nos Estados, onde o limite é de R$ 26.590 bruto, o fato se repete.

Ocorre que a magistratura, através de suas lideranças, não tem tido força nem competência para exigir do Executivo uma justa correção de seus vencimentos. E aí, fica apelando para todo tipo de penduricalho e artifícios incompatíveis com o cargo e a função que exerce. Isso pode parecer astúcia, mas tira o brilho de toda uma classe. E a faz baixar a cabeça. Lamentável.

Os magistrados acabam de garantir o recebimento de um auxílio-moradia, previsto na Lei Orgânica da Magistratura para aqueles que não têm onde morar nas comarcas que assumem. Aqui ele estará sendo pago, a partir de março, a todos os togados que não morem em residência oficial, tenham ou não casa própria. Deveria ser uma vantagem provisória, temporária. Daí o seu caráter de indenização. Mas não será. Os inativos – surpresa! – ficaram de fora. Mas não devem perder a esperança: logo, alguém dará um jeito de estender o benefício a eles também. Quem viver, verá.

Além do que, vem aí novo pacote de bondades: o restabelecimento dos adicionais por tempo de serviço, que os juízes já recebiam, mas preferiram incorporar ao salário, que passou a chamar-se subsídio. Agora, os adicionais estão voltando, eufemisticamente denominados VTS – Valorização por Tempo de Serviço, através de PEC já aprovada pelo Congresso Nacional. Terão, igualmente, caráter indenizatório; quer dizer, estarão isentos do pagamento de previdência social e de imposto de renda, além de não se submeterem ao teto salarial. Vantagem, por assim dizer, por fora. Essa gratificação ainda poderá ser incorporada na aposentadoria e estendida aos pensionistas. Se abranger também o tempo pregresso dos beneficiados, estourará os cofres da União e dos Estados e enterrará de vez a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Mais ainda: outras categorias funcionais certamente exigirão também o caráter indenizatório dos adicionais, lutando por ele e tornando o teto constitucional mera ficção. Se não tiverem êxito, pleitearão a derrubada da bondade da PEC 63/2013, já que ela é explicitamente inconstitucional.

Outras coisas: as associações de magistrados precisam parar de falar em evasão de pessoal e de comparar os salários de seus associados com os dos profissionais liberais. Elas sabem que estes não recebem dos cofres públicos. E, depois, ser juiz ou advogado é uma questão de opção. Como dizia um velho assessor jurídico do egrégio TJ, “lustramos os mesmos bancos escolares”.

Resumo da ópera: juízes e membros do Ministério Público devem ganhar bem. Com transparência, seriedade e decoro. Só assim serão capazes de exercer a função e fazer justiça, com isenção e sem enveredar por caminhos não recomendáveis. Se querem enriquecer, estão na carreira errada.

O que não se pode admitir nem justificar é que uma professora – tão essencial, se não mais, que um juiz –, depois de mais de 25 anos de atividade, ganhe menos do que um servente sem qualificação. Algo está errado aí. E a culpa, claro, é de quem dirige este Estado e este país.

P.S. I – Curioso: a professorinha que tenho lá em casa, aquela dos R$ 1.230, é neta do saudoso desembargador Clotário Portugal, patrono da magistratura paranaense. Ambos nunca tiveram problema de consciência.

P.S. II – O troféu de melhor título da temporada cabe a Rogério Galindo, que em sua coluna de quarta-feira 09/07, na Gazeta, ao tratar do tema aqui tratado, sapecou um irretocável “Minha toga, minha vida”.

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Uma ideia sobre “Bolsa-Magistratura

  1. Célio Heitor Guimarães

    Uma correção necessária, feita pelo bom amigo Dilson: minha mulher dava aulas na Vila Lindóia. Em Águas de Lindóia iríamos passear muitos anos depois.

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