9:37O arquiteto duplo

por Yuri Vasconcelos Silva

Erre Bastos, um consagrado decorador da cidade, celebridade permanente nas capas de revistas especializadas em bom gosto, sempre presente em coquetéis e jantares com as ricas e poderosas da capital. Não foi fácil para este arquiteto de interiores chegar ao Valhala da arquitetura paranaense. Ele conheceu a arquitetura ainda cedo, quando folheava um jornal e viu a foto de um museu que acabara de romper paradigmas. Um edifício do avesso, com as entranhas exibidas para fora, estrutura e circulações penduradas na fachada. Era o Centro George Pompidou em uma cidade e uma época conservadoras. Erre Bastos queria ser um revolucionário tal qual o museu. Ingressou na faculdade de arquitetura e viveu intensamente uma relação de paixão com vários arquitetos do passado e alguns do presente. Procurava compreender a mente de todos para moldar o próprio caminho profissional.

Depois de formado, topou com a parede granítica da realidade. Os poucos clientes que lhe chegavam não entendiam o que queria dizer com termos e idéias estranhas, tais como espaço permeável, pilotis ou plantas livres. Angustiado, perdia negócios como um bom azeite escorrendo pelo canto da boca. Com a situação financeira cada vez mais deteriorada, o que lhe prolongou a estadia na casa dos pais até os 38 anos, viu-se obrigado a ceder quando engravidou sua namorada. Por pressão das famílias, Erre Bastos, que a este tempo ainda se chamava Ulisses de Barros, foi forçado a alterar seu modus operandi na profissão, para conseguir algum dinheiro e independência. Primeiro mudou de nome, para não ofender os ideais que tanto prezava desde que vira o Pompidou pela primeira vez. Escolheu um mais sonoro aos ouvidos de esposas e dondocas endinheiradas. Teceu uma próspera rede de contatos e troca de favores com lojas de decoração, revistas e colunistas. Passou a participar de todos os eventos da cidade, desde lançamento de uma nova modalidade de salames até coquetéis beneficentes com primeiras-damas.

Apenas um par de anos depois desta nova estratégia, Erre Bastos recebia mais pedidos do que dava conta. Apesar de fornecer exclusivamente projetos de interiores, sua fortuna aumentava a cada dia porque vinha de uma fonte inesgotável no centro da aristocracia curitibana. Na verdade, não de um lugar apenas, mas vários. Como celebridade, percebeu que as damas adoravam tê-lo como arquiteto em suas bolsas, para exibi-lo às amigas. Então cobrava proporcional à fama. Como um bom lobista, Erre Bastos fazia um grande favor aos fornecedores de móveis e objetos de decoração, através de um pacto corruptível conhecido como reserva técnica, onde o decorador recebia a quantia proporcional à venda obtida pela loja através do seu projeto direcionado. Bastava especificar o mais caro para aumentar o lucro das duas partes. Erre Bastos e imprensa mantinham um relação quase simbiótica. Enquanto o primeiro precisava das colunas para arrendar mais clientes, jornalistas precisam de uma celebridade em suas páginas especializadas para vender papel ou bits numa coluna virtual. Por fim, as prestigiadas mostras de arquitetura, onde o nome do arquiteto mais festejado da cidade sempre esteve presente em um ambiente central e socialmente importante, como o “lounge do astronauta sorridente na estação espacial” da última mostra, na qual ganhou o prêmio por melhor proposta.

Vestindo sua um-pouco-extravagante roupa Armani com brilhantes Swarovski, óculos com grandes aros brancos à Sofia Loren e sapatos italianos com bicos pontiagudos com uns dois metros de extensão, Erre Bastos não parece sofrer de culpa pela traição ao seu ideal. Amigos próximos dizem que ele sequer lembra do seu nome real. Outros, no entanto, revelam que em algumas madrugadas ele desenvolve projetos secretos de grandes obras arquitetônicas que jamais sairão do papel ou da cabeça de Ulisses de Barros, o arquiteto.

 

 

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