7:04A costura do imponderável

por Ivan Schmidt

No domingo 5 de outubro teremos o primeiro turno das eleições gerais no país (presidente e vice, senadores e suplentes, governadores e vices, deputados federais e estaduais). Nos casos em que o segundo turno for obrigatório e ele só é aplicado nas eleições para o executivo, a votação será realizada provavelmente no último domingo do mês.

A legislação eleitoral vigente estabelecia a meia noite do último dia 30 como prazo para a finalização das chapas majoritárias e coligações partidárias, expondo as agruras vividas por PSDB e PT na indicação dos candidatos a vice-governador e senador do bloco liderado por Gleisi Hoffmann, à vista do enredo bipolar das negociações de campanário em torno de nomes e partidos e o peso ponderado de cada um nas operações de agiotagem visando o horário eleitoral, em que cada fragmento de minuto é disputado com a mesma volúpia da usurária trucidada a machadadas por Raskolnikov, o famélico estudante do monumental romance de Dostoievski.

O PSDB consolidou a chapa liderada pelo governador Beto Richa com a deputada federal Cida Borghetti (Pros), como vice-governadora. A vaga fora primeiramente negociada com o PMDB do B, que oferecia o também deputado federal Osmar Serraglio, além de barganhar com a candidatura avulsa do ex-governador Orlando Pessuti ao Senado.

Verificou-se, porém, que no momento em que o tiro deveria ser desferido, a prosápia dos betistas entrou em colapso pelo fato de terem esquecido a pólvora para o bacamarte, e o esperado tiro acabou saindo pela culatra…

O remédio foi apelar para o benevolente e imenso coração do ex-secretário Ricardo Barros, que afastara-se do cargo de secretário da Indústria e Comércio para dar prosseguimento à sua carreira política obtendo licença especial de seu partido, o PP, que decidiu em convenção apoiar a campanha de reeleição de Beto Richa.

A licença foi pedida em função de laços familiares muito próximos, pois o irmão do ex-secretário, Sílvio Barros, havia anunciado publicamente a candidatura ao governo pelo PHS, tendo inclusive começado a percorrer o estado em campanha. E seu principal cabo eleitoral haveria de ser o próprio irmão mais velho, veterano de vários mandatos na Câmara dos Deputados.

Sopraram, porém, os descontrolados ventos da política contra o bem-intencionado Sílvio, que a meu juízo daria conteúdo novo à discussão das carências da administração pública e da população, graças à sua formação humanista, e não lhe restou outra alternativa senão aniquilar sua intenção porque a carta tirada da manga por Ricardo foi sua mulher, a deputada Cida Borghetti.

A coligação tucana acabou ficando a mais robusta de todas, confirmando a máxima do quanto vale uma caneta cheia, ou nesse ínterim, a expectativa de que a mesma ainda tenha carga (alô Arno Augustin!), enchendo a suculenta sopa de letrinhas com a enxúndia de 17 siglas, a maioria absolutamente desconhecida do eleitorado.

Para o PT, que tem na coligação o PDT, PCdoB, PRB e PTN, a escolha do vice de Gleisi foi uma espécie de parto a fórceps, que só por coincidência recaiu sobre o médico Haroldo Ferreira, presidente em exercício do diretório regional do PDT. O prazo legal se esgotou sem que o PT tivesse conseguido concluir a discussão em torno do vice, na verdade, motivada mais pela recusa de setores petistas em aceitar a indicação do vereador pedetista Jorge Bernardi para o Senado, porque no momento de cruzar o disco final despontou o azarão proposto pelo PCdoB, o ex-deputado federal Ricardo Gomyde, assessor especial do ministro Aldo Rebelo. O PDT resistiu bravamente a entregar os pontos, mas foi vencido.

Com todo o respeito devido ao doutor Haroldo Ferreira, homem probo e profissional respeitado, eleito pelo PMDB para o primeiro mandato de deputado estadual em 1982, com base eleitoral em Francisco Beltrão e sólida ligação com o líder político do Sudoeste, Euclides Scalco, o que se pode afirmar é que a indicação de agora parece ter sido uma solução ditada pelo esgotamento do prazo.

Roberto Requião, isolado no PMDB, cedeu a vaga de vice à deputada federal Rosane Ferreira (PV), conquistando também a adesão do PPL, o que permitiu seu tempo no horário eleitoral a chegar perto da marca dos três minutos por emissão. Bem, o senador decerto vai repetir que a imagem vale mais do que mil palavras e coisas do gênero, que seu arsenal é vasto.

Tenho escrito nesse espaço que Requião se esgana para parecer o animal político pintado por Aristóteles, na Política. O filósofo queria dizer é que apenas o homem possuía as qualidades que tornavam possível a existência em comunidade, cuja forma mais elevada era a cidade, a pólis. A administração propriamente dita se resumia no conceito de que o governante dava ordens e os governados obedeciam, e que a primazia de dar as ordens cabia aos peritos, ou “aqueles que sabem”.

Contudo, lê-se no belo livro O julgamento de Sócrates, escrito pelo jornalista I. F. Stone, um dos mais combativos no cenário norte-americano do século passado (morto em 1989), que as analogias nem sempre são confiáveis, admitindo-se que “um democrata grego poderia argumentar que o proprietário do navio, o paciente, o proprietário de terras e o atleta tinham liberdade de escolher os peritos e que, se estes se revelassem insatisfatórios, podiam ser dispensados e substituídos por outros”.

Stone que editava sozinho um pequeno semanário, diz ainda ser essa a característica mais valiosa das cidades livres de Ítaca, cerca de 500 anos antes do nascimento de Cristo, ou seja, escolher e substituir seus funcionários: “Caso contrário, por detrás da fachada ‘daquele que sabe’ se ocultaria a face da tirania. O problema não era apenas encontrar o perito adequado, mas dispor de meios de se livrar dele caso se revelasse mau”.

O embate político que deverá se iniciar dentro de mais algumas semanas não será um florilégio e tampouco um descarrego de saberes filosóficos, ou de quem pretensamente sabe mais que os contendores. A julgar pelo aquecimento preliminar é presumível que a temperatura se eleve a níveis do desaforo, da agressão verbal e da troca de acusações. Quem perde é o eleitor, mais uma vez privado da possibilidade de escolher o melhor e mais competente – o perito na concepção grega — para exercer o governo numa época em que a propaganda enganosa é entronizada como fator sine qua non para o êxito das campanhas eleitorais.

Vale também refletir sobre a diáfana renovação dos quadros políticos num estado que se destaca entre os mais importantes do país. Há 30 anos, o ocultista e adestrador de pulgas Josef Nório Sculhoff (por onde andará?), analisando o melting pot dos pagos onde Tingui e seu clã comiam pinhões e pescavam cascudos no córrego Atuba, já doutrinava que decorrido um período igual os paranaenses estariam votando nos próprios ou filhos e netos dos que então dominavam a cena. É o que se percebe nos meados da segunda década do século XXI.

Isso ocorre porque a militância política deixou de ser uma atividade atraente para empresários, profissionais liberais, intelectuais e estudantes universitários, que constituíam a base dos partidos, quando esses eram verdadeiramente agremiações, não importa se mais ou menos encorpadas, e não meros cartórios para engrossar alianças e registrar chapas e candidatos.

Num contexto que teve o deputado Valdir Rossoni (na fase inicial do governo Beto Richa), como reencarnação de poderoso deus do Olimpo ao desferir raios contra os corruptos da Assembleia Legislativa, argumentando que “antes a gente não podia fazer nada porque não mandava”, não é de todo estranho perceber que nos primeiros lugares da ribalta haja também espaço para as performances de Ricardo Barros, Cida Borghetti e Ratinho Junior.

Não foi por acaso que uma velha raposa definiu a política como a arte de costurar o imponderável.

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