7:05Bandido não tem consciência

por Célio Heitor Guimarães

Corrupção sempre houve na administração pública brasileira. Provavelmente, desde que Cabral aportou suas caravelas no litoral baiano. Ocorre que, quinhentos anos depois, corruptores e corrompidos perderam de vez a compostura e, encorajados pelos exemplos que vêm de cima e escorados na impunidade reinante, passaram a agir a céu aberto, sem nenhuma cerimônia.

O recente caso do Tribunal de Contas paranaense foi estarrecedor. O coordenador-geral da corte encarregada de fiscalizar e coibir os desmandos e malfeitos dos governantes do Paraná revelou-se um dos chefes das quadrilhas que assaltam os cofres públicos. Para direcionar a licitação que escolheria a empreiteira encarregada da construção de um anexo do TC e arredar concorrentes, teria embolsado R$ 200 mil. E embolsaria muito mais no decorrer da festa, quer dizer, da obra, porque R$ 200 mil é uma merreca em tais negócios. Foi preso, juntamente com o dono da empreiteira que “ganhara” o chamado processo licitatório e com outros partícipes do “empreendimento”. Mas já estão todos soltos, livres e faceiros para agir, destruir provas comprometedoras e rir da cara de todos nós que pagamos a conta.

Na edição de segunda-feira, a Gazeta do Povo destaca obras que têm histórico de suspeitas, incluindo, com destaque, algumas patrocinadas pelo Poder Judiciário, marcadas por denúncias de irregularidades e favorecimentos espúrios. A mais explícita seria a construção do Fórum da Justiça do Trabalho de São Paulo, envolvendo o notório juiz Lalau e o empreiteiro Luís Estevão. Mas há exemplos paranaenses. O primeiro deles, a edificação do anexo do Tribunal de Justiça do Estado, ocorrida em 2005, que gerou denúncia de superfaturamento e cujo laudo técnico apontou “a execução de serviços sem cobertura contratual” e o pagamento em descompasso com o cronograma de andamento da obra.

Em 2012, a licitação da primeira fase das obras do novo Fórum Cível de Curitiba foi suspensa liminarmente pelo Conselho Nacional de Justiça, por suspeita de favorecimento na concorrência. E, como registra o jornal, a mais recente polêmica envolvendo imóvel do TJ/PR é a reforma do Palácio da Justiça, orçada em R$ 79,6 milhões. Pareceres técnicos do próprio Tribunal foram ignorados pela presidência do órgão. A licitação foi cancelada, retomada e novamente suspensa, situação em que se encontra presentemente.

Acho isso tudo muito curioso, para dizer o mínimo. Sinto dar um exemplo pessoal, mas tem cabimento. Quando integrei a administração pública e no mesmo Judiciário, por quase quinze anos dirigi – como antes haviam feito os colegas Dirceu Lamoglia e Benedicto Moreira e, posteriormente, Ariel Amaral Filho, Hugo Vieira Filho, Alcibiades Faria Neto, Edson Dallagassa, Eurico Vidal Jr. e outros – o Departamento do Patrimônio do TJ/PR, hoje completamente fatiado e reduzido em atividade e importância. Na época, o DP cuidava, além do suprimento material de todas as unidades do PJ estadual, na Capital e Interior, e do controle dos bens ali existentes, da aquisição de bens e materiais, da realização de serviços gerais de reparos; da construção, ampliação e reforma de edifícios forenses e da realização de licitações. Costumávamos dizer que éramos uma empresa sediada em Curitiba, com 130 filiais espalhadas pelo Paraná. Estas deveriam ser geridas pelos respectivos juízes diretores dos Fóruns, que nem sempre tinham capacidade administrativa.

[Para ilustrar, cito um exemplo ocorrido em comarca da Região Metropolitana da Capital. A convite do titular, fui fazer uma visita ao Fórum local. Lá, o magistrado, figura digna, afável e benquista pela comunidade, desfilou a série de deficiências do edifício. E apontou uma janela, cujos vidros encontravam-se quebrados e pelo buraco dos quais a chuva molhava os processos… Aconselhei o ilustre homem da toga a fazer o que ele já deveria ter feito há muito tempo: reunir três propostas de vidraceiros da cidade e enviá-las ao DP. Garanti que, isso feito, elas seriam imediatamente processadas e o defeito corrigido. Atrevi-me a aconselhar, ainda, S. Exª. a mandar colocar, enquanto isso, um pedaço de plástico ou papelão na janela danificada, a fim de evitar prejuízo à processada…]

Nos primeiros tempos daquela fase, tínhamos enorme carência. Não havia legislação específica sobre licitações – éramos obrigados a usar, como orientação, parte de lei estadual paulista; editais, contratos, distratos e termos aditivos tinham de ser criados, por falta de parâmetros. Somente alguns anos depois é que surgiria o Decreto-Lei 2.300/86.

Não obstante, a coisa era levada a sério. Editais eram feito e refeitos com o máximo cuidado para não deixar margem para dúvidas ou permitir qualquer tipo de desequilíbrio ou favorecimento. Havia certo excesso e certa ingenuidade nisso? Provavelmente, sim, já que os concorrentes sempre poderiam acertar-se entre si. Mas não haveria, com certeza, participação ou conivência da administração pública. Qualquer eventual má conduta era imediatamente coibida e punida. Resultado: nenhum procedimento licitatório foi questionado, anulado, contestado judicialmente ou reprovado pelo colendo TC.

Por que digo tudo isso? Para provar que é possível administrar a coisa pública com seriedade, compostura e honradez. E não é difícil: basta que se cumpra o dever. Até porque honestidade não dói. Pelo contrário, faz bem à saúde. Decência não enriquece, não eleva padrão social e faz o cidadão viver a vida toda apenas da remuneração do seu trabalho. Mas há coisa melhor do que isso? Eu poderia dizer que sim: a tranquilidade da consciência, se corruptos, corruptores e corrompidos do serviço público tivessem consciência.

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