8:34O ano que nunca existiu

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Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

Tenho obsessões. Muitas delas me causam constrangimentos. Busco suas origens para identificar onde nasce o inimigo. É uma busca cega, um mergulho num mar em permanente revolta. Sou abstêmio há catorze anos. Não é obsessão. É apenas uma frágil estratégia para esticar um pouco os segundos que me restam. A agitação do corpo — encharcado pelo álcool no réveillon — não me sufoca no Ano-Novo. Estou insanamente sóbrio. Busco o livro de capa vermelha e o leio em duas longas golfadas — uma pela manhã, outra, à tarde. As perguntas são inevitáveis: “Por que este livro?; O que tem este livro?; Você não cansa de ler sempre o mesmo livro?”.

Não foram tantas leituras: treze nos últimos treze anos. Sempre no primeiro dia de janeiro. O livro vermelho abre a lista anual de leitura. Umas das tantas obsessões. Desde 1993 — nos meus longínquos vinte anos de idade —, registro todos os livros lidos durante o ano. Algo bastante simples: o número, o título em negrito e o autor. Tudo em letra minúscula. Arrasto estes arquivos de computador a computador como um móvel de estimação a percorrer gerações de uma nobre família. Agora, estão num arquivo online, em algum lugar desconhecido. Talvez nas nuvens ao lado de Deus.

Há tempos algo me incomoda. Uma falha em minhas obsessões. Uma greta escancarada diante de meus olhos míopes. A falha no início da lista tira-me a paz inexistente. Um pequeno salto na loucura que criei para existir. Nas listas estão aprisionadas histórias que me acompanham — autores e livros da minha vida. Alguns não deixaram nenhuma marca. Outros cavaram cicatrizes incuráveis. A tempestade pode inundar minha biblioteca. O fogo, consumi-la em minutos. As traças assassinas, devorá-la. Os livros podem tomar o caminho do sumidouro das palavras perdidas. Mesmo assim nada será capaz de me roubar as obras lidas, suas histórias, personagens, silêncios e assombros.

No alto, a fenda por onde entra uma luz negra. O ano de 1994 sumiu. Sem rastro, nenhuma pegada no deserto solitário das leituras. Li o livro de capa vermelha naquele ano? O que aconteceu na minha vida? Volto às listas com certa frequência. Abro um ano qualquer e passeio pelos títulos e autores. De alguns, a lembrança é nenhuma. De outros, certa emoção me atira novamente àquele tempo. O tempo não passa no rosto vincado, onde sulcos começam a esburacar a pele, nem nas dores no ciático (este monstro que, às vezes, me tira o pouco sono), mas nas entrelinhas de personagens que atravessam meu caminho.

O atacante baixinho fez um gol. Fez vários gols. Havia homens pulando em volta de um campo de futebol. Homens grandes pulando de alegria por algo estranho. Depois, suados, sujos, estropiados, levantam uma taça. Estão muito felizes. Todos muito felizes. As imagens estão comigo. Muita gente feliz nas ruas. Somos campeões do mundo. Os gritos volteiam pelas cidades, pelo país, pelo mundo. É um ano inesquecível. Mas antes, houve muita tristeza. Uma curva e a morte. A batida violenta contra o muro na curva assassina. Muitos choram. Lamentam a morte de um gênio das pistas. Eu não chorei. Não gosto de chorar. Outros morreram: o músico famoso e o humorista trapalhão. Gostava de ambos. Mais do trapalhão. Parece que muitas coisas aconteceram naquele ano.

Mas para mim 1994 é apenas uma cicatriz aberta, por onde sangra um livro de capa vermelha.

*Texto publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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