7:02Curitiba, ano 321

por Nilson Monteiro

 

A cidade pisa em poças.

 

Infinita, sua neblina me consome em madrugadas úmidas.

 

Há um misto de nostalgia e velocidade da luz neste caminhar molhado. Sentimentos grudados nos ponteiros e nas velas acesas no altar da idade. Escorre gordura nas vidraças de pensões baratas. O lume da calçada de mármore rebate a luz dos refletores.

 

Curitiba, três séculos e 21 anos na mochila, me assanha pelo seu jeito. Seduz: meio polaca, meio índia, meio européia, meio negra, meio metropolitana, meio aldeia, meio sagaz, meio malaca, mistura de raças, culturas, falares, uma Babel do avesso cortada por carroções de madeira, sulcos na terra, e a loucura dos neons, sulcos óticos.

 

Caminho, lerdo, por suas ruas povoadas de sabiás. Há no ar um jeito poético de sentir e viver, matar e morrer. Plena de predicados e adjetivos, nem liga. Parece senhora de si. Parece. Sua alma me segue viva. A dor espia aqui e ali, mostra a identidade aqui e ali e faz piruetas no teu perfil verdejante, com rugas desses tantos anos e pose de moderna. É moderna, embora cultive teias provincianas em seu cérebro múltiplo. Cosmopolita e conservadora.

 

Há sapos elásticos em nosso passado de agora há pouco nas águas barrentas de teus bairros. Olhos esbugalhados espiavam para nossos dias que viriam em tantos outros meses das águas. Saltavam. O calendário desfolhado lembra os sapos, as pipas, os balões, as estrelas, os apitos de trens, os charcos, as lambidas de vento gelado que tomávamos quando março ia se esfumaçando e anunciando abril. O calendário é cruel, tenta apagar a infância, mas os sapos permanecem pulando dentro do peito. Nostálgicos, de línguas afiadas em busca de lembranças.

 

A cidade tem seus remendos, tecidos esgarçados no pano social e nas cortinas imundas que balançam em janelas prostituídas. Há encantos nessas janelas e em seus convites. O pano esgarçado é sofrível, está largado pelas ruas. Mas, março passa rápido. Restam as lembranças manchadas de perfume, baton e esmalte baratos.

 

Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, junto a santos de todas as religiões, incluindo as agnósticas, que nos cuide da desesperança e do obscuro. A fé não falha, nem nesta cidade onde a Boca Maldita não perdoa nem o Papa. À benção todos os santos que me benzem e curam enquanto me perco em divagações por suas praças e ruas.

 

O homem nu, petrificado, não olha a mulher nua. Há um crime anunciado na esquina nas dobras do Passeio Público. E um samba quadrado, feijoada com mentruz, na Saldanha Marinho.

 

Os faróis atropelam a cibernética e desabam sobre os signos da geriatria ou da informática urbana. Piscam como velas ardentes.

 

Orgulhosa de suas virtudes, a cidade comemora mais um aniversário neste março e cultivo dúvidas: são as cidades as pessoas? Esta Curitiba poética, cinza e iluminada me ensopa os olhos.

 

Vou embora pro Cajuru.

 

Lá, sou amigo do Padre. Terei a cerveja que quero, na mesa que escolherei.

 

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