8:33Ao erguer taça, zagueiro iniciou prática comum aos vencedores

por Ruy Castro

 

Quando Bellini, capitão da seleção brasileira, levantou a taça Jules Rimet –o troféu pela conquista da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, pelo Brasil–, não imaginava que aquele gesto teria vida tão longa. Primeiro, tornou-se uma prática comum aos vencedores de qualquer esporte, erguer o troféu acima da cabeça. Segundo, o próprio Bellini ficou marcado por ele. Para todos que o admiravam, tornou-se –sem querer– a estátua de si mesmo.

 

Quatro anos depois, o empresário Abraão Medina plantou na entrada do Maracanã a estátua de um homem levantando um troféu. O corpo era o de um atleta, mas o rosto era o do falecido cantor Francisco Alves, grande admiração de Medina. Pois o carioca não quis saber –chamou-a “a estátua do Bellini”. E é assim que, até hoje, marca-se encontro “no Bellini”, torcidas brigam “no Bellini”, namorados se beijam “no Bellini”. Se, antes, Bellini foi uma estátua, depois a estátua se tornou Bellini.

 

Durante anos, ele foi capitão de uma seleção brasileira que tinha Pelé, Didi, Garrincha, Nilton Santos, Zaga llo, Zito, Dino Sani, Orlando, Gilmar, Djalma Santos e o seu próprio reserva, Mauro. Eram homens de grande personalidade. Vários poderiam capitanear o time, e todos –sem exceção– eram mais jogadores do que ele. Então, por que era Bellini o titular indisputado da zaga central do Brasil e só a ele se pensava em dar a camisa 3 e a braçadeira de capitão?

 

Pela aura que emanava de sua figura. Bellini era o líder, o comandante natural. Seu 1,82 m de altura e 80 kg de músculos podiam fazê-lo pairar acima da maioria, mas o que importava era a autoridade que brotava de dentro dele. Era inteligente, firme e articulado, e também educado, consciente e justo. Como um irmão mais velho, dava broncas nos estouvados Pelé, Garrincha e Mazzola. Já com Didi, Nilton Santos e Zito, era o interlocutor adulto. No jogo propriamente dito, era valente –compensava a pouca técnica com o jogo duro. Mas, para que não se pense que era violento, saiba-se que suas pernas eram um mapa de cicatrizes, resultado de combates semanais com centroavantes tão pesados quanto ele.

 

Segundo todos os relatos, era um homem bonito. As mulheres sabiam disso, e os produtores de cinema –que queriam levá-lo para Hollywood–, também. Mas Bellini, que, ainda fresco da Suécia e do gesto de estátua, recusara uma proposta do Real Madrid de Di Stéfano e Puskás, recusou também Hollywood.

 

Era paulista de Itapira, mas fez sua carreira no Vasco da Gama. Curioso é que, antes de ir para o Vasco, aos 22 anos, em 1952, ele atuava no Sanjoanense, da pequena São João da Boa Vista (SP), onde, quatro anos antes, substituíra outro zagueiro alto que saíra de lá para atuar no São Paulo –Mauro. Pelos anos seguintes, os dois seguiram carreiras paralelas e gloriosas, e se enfrentaram muitas vezes nos Torneios Rio-São Paulo, até que Mauro foi seu reserva na seleção em 1958. Em 1961, Mauro trocou o São Paulo pelo Santos, e Bellini o sucedeu pela segunda vez, porque o São Paulo, sabendo de seu litígio com o Vasco, levou-o para o Morumbi. E a ciranda se completou quando, em 1962, na Copa do Mundo do Chile, Mauro se rebelou contra sua condição de eterno reserva e ameaçou deixar a seleção.

 

Fosse outro, isso seria visto como uma insubordinação. Mas Mauro era tão respeitado que a comissão técnica ponderou suas palavras.

 

E foi Bellini quem bateu o martelo: “É justo. Agora é o Mauro”. (Que outro jogador faria isso?) Com Mauro de capitão e com a camisa 3, o Brasil foi bi. E Bellini e Mauro, que até então nunca tinham sido próximos, tornaram-se os melhores amigos um do outro pelos 50 anos seguintes –até a morte de Mauro, em 2002.

 

O amor ao futebol manteve Bellini em atividade até 1969, quando, aos 39 anos, encerrou sua carreira, no Atlético Paranaense. Nos anos seguintes, foi dono de um supermercado e uma doceria, teve uma escolinha de futebol e organizou torneios para grandes empresas. Mas Giselda, a bela professora com quem se casara em 1963 e que lhe dera seus filhos Carla e Junior, achava que, com quase 50 anos, ele podia fazer melhor. Induziu Bellini a prestar o supletivo, cumprindo em um ano o curso secundário, e depois fazer o vestibular de direito. Bellini foi aprovado, fez o curso na FIG (Faculdades Integradas de Guarulhos) e formou-se aos 54 anos. Depois, submeteu-se ao exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), no qual também passou e ganhou a carteira de advogado. Nunca exerceu a profissão –porque não quis–, mas, para ele, aquilo devia ser equivalente à Copa do Mundo que levantara.

 

Pouco antes de chegar aos 70 anos, Bellini começou a sofrer a lenta erosão do Alzheimer. À medida que a situação se agravava e os tratamentos se mostravam ineficazes, Giselda começou a protegê-lo do olhar público. Os que os viam passeando de mãos dadas pelo bairro de Higienópolis não sabiam que aquele senhor alto e bonito –que conservou por muito tempo o peso, altura e imponência de seus tempos de atleta– era o homem que levantara a Copa do Mundo.

 

*Publicado na Folha de S.Paulo

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