6:19Uma crise anunciada

por Ivan Schmidt

 

Não é de hoje que se discute o setor elétrico brasileiro, assim como são conhecidas as inúmeras propostas de otimização do sistema de geração e transmissão do insumo ventiladas nas últimas décadas, a maioria delas esfumada pela falta de decisão, leniência administrativa e subordinação do setor ao caciquismo que infesta a política brasileira desde a época da deglutição do bispo Sardinha.

Logo depois do apagão de 2002 deu-se o lançamento do livro organizado pelos professores Ildo Sauer, Luiz Pinguelli Rosa e Roberto Pereira D’Araújo, entre outros, A reconstrução do setor elétrico brasileiro (Paz e Terra e Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2003), cuja formação acadêmica e conhecimento de causa os escalam no primeiríssimo time de sumidades da área.

Na verdade, foram esses cientistas que abasteceram o noticiário na época do apagão com análises minuciosas e irrespondíveis sobre o estado precário do sistema, sendo inclusive chamados a integrar o setor no primeiro governo Lula. Pinguelli assumiu a presidência da Eletrobrás e Sauer tornou-se diretor da área de energia da Petrobras, mas ambos permaneceram pouco tempo nos cargos em face das enormes dificuldades encontradas para fazer avançar seus projetos.

No estudo inicial do livro (Um novo modelo para o setor elétrico brasileiro), Sauer e colaboradores afirmavam que “após seis anos de postergações dos investimentos em nova capacidade de geração e transmissão, a situação de crise e a ameaça de racionamento se concretizaram no início de 2001. Em razão das características intrínsecas ao modelo e da condução das reformas, o setor energético voltou a ser, 50 anos depois, um importante gargalo ao crescimento do país”.

Vejamos o que sustentava o estudioso da matriz energética sobre um dado elementar ainda hoje em foco: “Mais do que chuva, faltou política e ação para fazer cumprir a legislação, pelos agentes públicos e privados, na área de energia do Brasil, deflagrando uma crise anunciada”. É uma cena deprimente assistir o aparvalhado ministro Edison Lobão, das Minas e Energia, preposto do senador José Sarney num setor que dispõe de um dos mais polpudos orçamentos da República, não por acaso dominado há décadas pelo morubixaba maranhense, na estouvada missão de jogar a culpa dos recentes apagões sobre os ombros de São Pedro.

A última notícia bombástica sobre os achaques do sistema é que o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou um rombo de pelo menos R$ 2,7 bilhões no bolso dos consumidores de energia elétrica, entre 2009 e 2013, “gerado por atrasos em obras na linha de transmissão Acre-Rondônia e por desperdícios nos subsídios à conta de luz dos moradores da região Norte”, segundo o jornal O Estado de S. Paulo dessa quinta-feira (20). Trocando em miúdos, a conta de luz poderia ter ficado mais barata para os consumidores sem os gastos extras, que o TCU rotulou como “desperdícios”.

Voltando à crise do início do século, Sauer lembrava que o governo federal decretou o racionamento de energia elétrica, alegando que “a desmontagem e o desaparelhamento do sistema de planejamento, evidentemente, encontram-se entre as principais causas dessa situação extrema”, reconhecendo que “o sistema brasileiro possuiu grandes reservatórios em bacias com regimes hídricos distintos. Foi construído sob a lógica de que deveria prevalecer, tecnicamente, a gestão integrada, de longo prazo, do estoque de água armazenada. Ao contrário dos países com predominância termelétrica, a operação atual do sistema brasileiro tem implicações relevantes nas suas condições futuras. Portanto, deve levar em conta a possibilidade de situações de desequilíbrio no longo prazo”.

Os que insistem em fazer a apologia do modelo brasileiro podem dar de barato, e o fazem quase todos os dias, mas o ilustre professor Ildo Sauer, atual diretor do Instituto de Eletrotécnica da Universidade de São Paulo (USP), já apontava para implicações e desequilíbrios que demoraram apenas uma década para aflorar.

Entre 1990 e 2000 a capacidade instalada de geração do país cresceu 33% para um aumento de 49% do consumo. A conclusão é que se evidenciava de maneira insofismável a deterioração da garantia de energia, segundo pesquisas realizadas pela equipe chefiada por Sauer. Tudo por conta do déficit de investimentos de geração e “o abandono de importantes e estratégicos projetos de troncos de transmissão, os quais reforçariam a interligação das regiões Sul, Sudeste e Norte. Ao contrário dos sistemas termelétricos, a transmissão no Brasil é capaz de influir não apenas na confiabilidade, mas também na quantidade de energia ofertada”.

Sabe-se que 80% da geração de energia no país têm como fonte as hidrelétricas, embora o país deva superar pesados desafios para expandir a capacidade do sistema e atender à crescente demanda prevista para os próximos anos, segundo o analista Roberto Rockmann no jornal Valor Econômico na edição de 15 de setembro de 2011. Na época, a média do consumo nacional era de 2,4 mil kWh por ano, abaixo do patamar médio mundial de 2,9 mil kWh, dos 3,3 mil kWh no Chile e Argentina e bem abaixo dos 12 mil kWh dos Estados Unidos.

Para o atendimento equânime da demanda, Rockmann dizia que a capacidade do sistema precisa passar de 110 mil MW para 171 mil MW até o final da década, exigindo o investimento de R$ 190 bilhões em projetos, dos quais uma boa parte já foi licitada em leilões. “O montante a ser investido em novas usinas – ainda não contratadas ou autorizadas – é de cerca de R$ 100 bilhões, sendo 55% em hidrelétricas e 45% no conjunto de outras fontes renováveis, de acordo com o Plano Decenal 2020. O documento ressalta que, se as licenças ambientais para esses projetos não forem obtidas a tempo, o governo terá de dar prioridade às usinas térmicas a gás”, escreveu.

A visão atualizada que muitos analistas têm do setor elétrico brasileiro foi sintetizada pelo economista Rogério Furquim Werneck, doutor pela Universidade de Harvard e professor da PUC-Rio:  “Esse é um setor em que, há muitos anos, o governo se tem permitido ser particularmente irracional”. O professor enfatizou que em meados de 2003, a então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, apresentou uma proposta de reestruturação do setor elétrico “que simplesmente não fazia sentido”. Entre “pontos inegociáveis” e delírios voluntaristas – o artigo saiu no Estadão no último dia 14 – a proposta mostrava completo descaso por incentivos e fatores de risco que pautam decisões de investimentos no setor.

Há cerca de um ano e meio, prosseguiu Furquim, “preocupado com a inflação, o governo decidiu reduzir tarifas de energia. Poderia ter diminuído a carga tributária que incide sobre as tarifas. Mas preferiu partir para a redução de preços pagos aos produtores de energia, por meio de truculenta antecipação do vencimento dos contratos de concessão. Até hoje o setor não se recuperou da desorganização deflagrada por essa intervenção”.

Nada disso funcionou, disparou o professor da PUC-Rio (que Dilma abomina), ao concluir que “a precariedade do suprimento de energia elétrica com que hoje conta o país se tornou evidente. E a probabilidade de que um racionamento se torne necessário já passou de ser preocupante”.

Só faltava essa. Então, o último a sair apague a luz…

Compartilhe

2 ideias sobre “Uma crise anunciada

  1. rubens ghilardi

    Muito ilustrativa os comentários do Ivan, no entanto acho interessante um pequeno lembrete do que nos levou a situação atual.
    Devemos lembrar que, independente dos governos, até 1995, pré-privatização, o setor elétrico brasileiro não era predominantemente estatal. Na década 50/60 foi quando o Estado Brasileiro resolveu, também, participar da expansão do setor elétrico pelo não investimento da iniciativa privada, praticamente estrangeira, para que o nosso país pudesse desenvolver como nação. Na década de 50 foram criadas as empresas estatais estaduais e, posteriormente, a Eletrobrás. Portanto nunca houve restrição da participação privada no setor, o que aconteceu que eram investimentos de alto custo com retorno abaixo do desejado pelos investidores. Este deve ter sido o motivo de foram vendendo suas empresas no Brasil e só voltaram quando o Governo resolveu vender suas distribuidoras não precisando investir nada e, sem compromisso com a expansão da geração para atender seu mercado e com recursos do BNDES. Por tanto risco zero “comprando” a empresa pronta e com possibilidade de reduzir despesas, principalmente com demissão dos empregados e, no primeiro ano de atividades remeterem gordos dividendos para a matriz sem ter desembolsado nada. Esta foi à mudança tão badalada da privatização das empresas brasileiras.
    Rubens

  2. Ivan Schmidt

    Oportuno e esclarecedor o comentário do doutor Rubens Ghilardi, ex-presidente da Copel. Muitíssimo obrigado pela honra da leitura.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.