9:50Desprezo

de Manoel de Barros

 

Desprezo era um lugarejo. Acho que lugar

deprezado é mais triste do que abandonado.

Não sei por quê caminhos o mundo me tirou do

Desprezo para este Posto de gasolina na

estrada que vai para São Paulo. Acho quase um

milagre. Quando a gente morava no Desprezo

ele já era desprezado. Restavam três casas em

pé. E três famílias com oito guris que corriam

pelas estradas já cobertas de mato. Eu era um

dos oito guris. Agora estou aqui botando

gasolina para os potentados. Naquele tempo

do Desprezo eu queria ser chão, isto ser:

para que em mim as árvores crescessem. Para

que sobre mim a conchas se formassem. Eu

queria ser chão no tempo do Desprezo para

que sobre mim os rios corressem. Me lembro

que os moradores do Desprezo, incluindo os

oito guris, todos queriam ser aves ou coisas

ou novas pessoas. Isso quer dizer que os

moradores do Desprezo queriam ficar livres

para outros seres. Até ser chão servia como

era o meu caso. Ninguém era responsável pelas

preferências dos outros. Nem isso era  a

brincadeira. Podia ser um sonho saído do

Desprezo. Uma senhora de nome Ana Belona queria

ser árvore para ter gorjeios. Ela falou que não

queria mais moer solidão. Tinha um homem com

o olhar sujo de dor que catava o cisco mais nobre

do lugar para construir outra casa. Não

sei por quê aquele homem com olhar sujo de dor

queria permanecer no Desprezo. Eu não sei

nada sobre as grandes coisas do mundo, mas

sobre as pequenas eu sei menos.

 

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