por Zé da Silva

Escorpião

“O outro é você mesmo em um mundo diferente. Olhe-o com apreciação profunda”. A frase de do Lama ele não sabe como veio parar na frente dos olhos. Tinha acabado de quase enfiar a mão na cara de um ciclista que por pouco não o atropelou numa ciclovia e ainda o chamou de “mané”.  Pensou: então ele sou eu? Que merda! Tomou um banho quente e a bolha que tem embaixo do pé esquerdo voltou a incomodar. Imaginou alguém sentindo aquilo também. E a dor no joelho direito onde abriu uma avenida para remendar um tendão rompido. Quem seria o filho da puta que compartilhava com ele aquela vontade de beber tudo, até álcool Zulu, e escutar o tuimmmmm logo depois da tragada do crack e a nóia de ter medo da sombra da alma? Seria ele também o anjo que o tirou da areia movediça – ou o outro foi chacinado nas quebradas da periferia por não ter pago as pedras que pegou para revender para o dono do quarteirão imundo? Uma criança o chamou pelo nome. Saiu perfumado do banheiro e começou a abraçar pela ordem de entrada em cena: um menino de cabelos cacheados, uma menina de pele escura e sorriso iluminado, uma menina de boca carnuda e pelos loiros nos braços. Olhou para trás e viu os netos e bisnetos que ainda não tinham aparecido. Lá atrás viu de onde vinha essa sequência dos seus outros que tecem o grande mistério. Entendeu do seu jeito a frase do monge e apagou todo o lado ruim e desconhecido.