16:54Trevas dos brasileiros

por Ruy Castro

 

Nelson Rodrigues, numa crônica dos anos 60, falou de um inglês de passagem pelo Rio. Ao lhe perguntarem que característica identificava no brasileiro, o visitante espiou em volta e declarou: a cordialidade. Referia-se às pessoas que, nas ruas, se dirigiam umas às outras como se se conhecessem, fossem íntimas e se estimassem, embora nunca se tivessem visto.

Nelson fez disso um artigo, mas talvez não partilhasse da ideia do inglês –ou não de todo. Porque, em outra crônica, pouco depois, escreveu: “O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro”.

Mas se não sabíamos como era o brasileiro por dentro, não é por falta de exemplos que estamos deixando de saber. Nosso passado recente inclui prisioneiros metralhados às centenas numa cadeia, homens fritando seus semelhantes em “micro-ondas” nas favelas ou abatendo helicópteros com fuzis. Chacinas são vistas como faxinas. Outros degolam companheiros de cela, chutam cabeças de adversários caídos nas arquibancadas, agridem moradores de rua e gays e vão às ruas para destruir, queimar, matar.

Conheci Santiago Andrade, o cinegrafista morto pelos “black blocs”. Durante anos, veio semanalmente a meu apartamento, com o produtor João Paulo Duarte, para gravar uma coluna diária que eu fazia na TV Band News. Era grande profissional e pessoa. Insistia no melhor enquadramento, melhor som, melhor luz. Se, por minha culpa, tivéssemos de refazer cada coluna duas ou três vezes, era com ele mesmo.

Santiago foi vítima desses brasileiros que estão pondo suas trevas para fora. Há algo de monstruoso em quem dispara um rojão em meio a uma multidão, indiferente ao que pode acontecer. Alguém fracassou na formação desses indivíduos. Não somos cordiais, somos cruéis, e é bom que o mundo se cuide a nosso respeito.

 

*Publicado na Folha de S.Paulo

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2 ideias sobre “Trevas dos brasileiros

  1. antonio carlos

    A violência já faz parte do nosso quotidiano, só nos indignamos quando um de nós é vítima dela. As mortes que acontecem as dezenas nos finais de semana são todas encaradas como “acertos de conta”, e é assim que encaramos a violência, enquanto ela não bate a nossa porta não nos importamos com ela. Mas se somos assaltados, aí todos liberamos a fera que existe dentro de cada um destes barsileiros bonzinhos e cordiais, como acreditava o inglês.

  2. Jeremias

    A mesma Band que chora a morte de seu funcionário é a Band que incentivou os tais blequebloques a atacar o apartamento do Governador do RJ, a incendiar o Palácio Itamarati, a tumultuar a Copa das Confederações, etc.
    É só procurar os depoimentos do Boechat no You Tube. Está tudo lá.
    As coirmãs não foram diferentes. Os blequebloques tiveram amplo espaço na Globo e em capas de Veja quando eram estimulados pelos golpistas de sempre a agir contra o Governo eleito.
    Agora resta o cinismo de editoriais mal ajambrados.
    Quem não te conhece que te compre!

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