7:0650 anos nos contemplam (III)

por Ivan Schmidt

 

Entre quatro e cinco horas da manhã de 31 de março de 1964 o general Olympio Mourão Filho ordenou o início do movimento golpista contra o governo institucional presidido por João Goulart. Tropas sediadas em Belo Horizonte pegaram a estrada na direção da ponte sobre o rio Paraibuna, no sentido do Rio de Janeiro. Segundo Hélio Silva não demorou a chegar a notícia de que o I Batalhão de Caçadores de Petrópolis estava se deslocando para o mesmo local em sentido oposto, a fim de obstar a progressão da tropa mineira. Soube-se também que outros destacamentos do Rio de Janeiro estavam mobilizados para entrar em combate.

A conspiração havia entrado em seu ritmo mais acelerado nos últimos dias do mês, quando a população católica se preparava para os ritos da semana santa. As manifestações dos marinheiros e dos sargentos do Exército espicaçaram a alta oficialidade, embora alguns dos generais mais graduados na escala do contragolpe (ninguém é de ferro!) estavam curtindo o feriadão em lugares mais aprazíveis que a caserna.

Mourão Filho estava em Ouro Preto e foi chamado a Belo Horizonte pelo general Carlos Luís Guedes, que pleiteava o levante imediato sob o argumento de que já estava sublevado e, contando ainda com a prontidão do efetivo da PM de Minas sob as ordens do coronel José Geraldo, oficial da inteira confiança do governador Magalhães Pinto.

O general Odílio Denys, que havia sido ministro da Guerra do curtíssimo governo Jânio Quadros e quadro importante da conspiração, sugeriu e logo foi convidado para um encontro com o governador de Minas e os generais Mourão e Guedes, no dia 28 de março em Juiz de Fora. Numa demonstração de como as forças do contragolpe eram guarnecidas por invejável logística, Denys partiu para a cidade mineira a bordo de um poderoso Gordini, pilotado por seu genro, capitão Gustavo Fernandes Júlio. Mais tarde, foram alcançados pela filha Gizélia, mulher do capitão, dirigindo o Chevrolet do pai, que fora levar os documentos pessoais esquecidos pelo marido.

Nos depoimentos dados após o golpe o general Mourão Filho, ao se referir à reunião convocada por Magalhães Pinto, achou que o governador “queria somente conversar”. Finalmente se decidiu pela publicação de um manifesto pedindo o afastamento imediato de Jango, e sua sucessão de acordo com a Constituição vigente, sendo esse um pedido insistente do general.

Ainda não se havia pensado na data para a deflagração do golpe e só mais tarde se descobriu que o dia escolhido fora o 2 de abril. Mourão acabou se antecipando ao próprio marechal Castelo Branco, chefe do Estado Maior do Exército (EME) e oficial de mais alta patente na hierarquia da conspiração, que havia escolhido a data. Sob esse aspecto seu arrazoado é ótimo: “O dia 1º de abril teria somente uma vantagem, acrescentei, chocarreiro: ninguém irá acreditar”.

Muito já se descobriu sobre a participação do governo norte-americano, por intermédio da Embaixada brasileira e da CIA, no golpe que derrubou o presidente João Goulart. O historiador Hélio Silva conta que no início de 1964 o grupo Mesquita, do jornal O Estado de S. Paulo, contribuiu para a formação de uma célula civil e militar para resistir à tentativa governamental de criar um estado totalitário. “Só o grupo Mesquita gastou dez mil dólares em armas, inclusive metralhadoras”, escreveu no importante relato histórico 1964: Golpe ou Contragolpe?

Diz ele ainda que os Mesquita mandaram um emissário falar com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, para saber a posição daquele país no caso de guerra civil. “Ele (o emissário) informou que Gordon portara-se com cautela e diplomacia, mas deixara a impressão de que se os paulistas pudessem se manter por 48 horas, conseguiriam reconhecimento e ajuda por parte dos Estados Unidos”.

Hoje se sabe muito mais, mesmo que essa parte da história ainda esteja longe da conclusão, porque muitos arquivos continuam fechados. Contudo, em livro escrito pelo repórter investigativo A. J. Langguth em 1978 – A face oculta do terror – publicado no Brasil pela Civilização Brasileira e, em seguida pelo Círculo do Livro, sobre a ação exercida pela “diplomacia” norte-americana em países da América Latina, já se revelava que “em 1949, o Pentágono ajudou o Brasil a fundar e equipar uma cópia do National War College, a Escola Superior de Guerra”.

Ao mesmo tempo os Estados Unidos criaram uma infraestrutura de treinamento militar para todo o continente, incluindo a Escola das Américas do Fort Gulick, na Zona do Canal do Panamá, para ministrar cursos exclusivamente em espanhol e português. Langguth comentou que “tantos dos seus ambiciosos diplomados voltaram para casa imbuídos de tal fervor contra qualquer interferência civil, que a escola se tornou conhecida em todo o continente como a ‘Escuela de Golpes’”.

Para ele, entretanto, “o mais importante centro de treinamento era administrado em Fort Leavenworth – e muitos dos oficiais que agora conspiravam contra Goulart haviam sido treinados ali”. O jornalista decerto está se referindo à época em que oficiais superiores das três armas tramavam a derrubada de Jango. Ele também anotou que segundo um general norte-americano que servira naquela instalação militar, “aqueles homens saíam de Leavenworth com um ardente desejo de se identificar com os Estados Unidos e receber armas de seus colegas norte-americanos”.

Langguth escreveu também que o embaixador Lincoln Gordon tinha um dossiê sobre o governo brasileiro, além de manter sob vigilância os sindicatos nos quais suspeitava que Goulart tivesse plantado elementos ligados ao comunismo, especialmente entre trabalhadores do petróleo, marinha mercante, ferroviários, bancários e empresas de comunicação, entre outros setores.

O adido militar da embaixada, o coronel Vernon Walters, veterano da Segunda Guerra Mundial, que pelo excelente domínio da língua portuguesa servira como oficial de ligação entre o comando militar dos Estados Unidos e as tropas da FEB na Itália, tornando-se amigo íntimo de Castelo Branco, era a principal fonte de informação sobre futricas dos meios militares.

Os próprios agentes da CIA infiltrados na embaixada sabiam que o golpe contra Goulart seria difícil, produzindo informes sobre a necessidade do apoio do general Amaury Kruel que substituíra Pery Bevilacqua no comando do II Exército. “A intimidade de Kruel com Goulart criava um problema, pois as forças de São Paulo eram imprescindíveis ao sucesso do golpe. Constava que Walters declarara aos oficiais brasileiros que, se realmente queriam ajudar, deveriam persuadir Kruel a aderir à conspiração”, escreveu o jornalista.

Tendo realizado inúmeras viagens ao Brasil para investigar a estratégica da colaboração da CIA com os serviços de repressão latino-americanos, Langguth, que cobriu a Guerra do Vietnã para o The New York Times, citou que “ao ver-se ameaçado, Goulart procurou manter-se na presidência com a única arma que dispunha. Programou uma série de pronunciamentos públicos destinados a assegurar à população que as ambições tirânicas que lhe atribuíam eram falsas. Qualquer que tenha sido o efeito desses discursos sobre os seus compatriotas, a estratégia serviu apenas para alarmar ainda mais os agentes de informação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, que viam naquilo uma emulação das táticas de Fidel”.

Na noite de 27 de março, Walters garantia ao Departamento de Estado que seu amigo Castelo Branco “prestigiava firmemente” a conspiração, sendo apontado como um dos líderes das forças dispostas a apear Jango do poder. Poucos dias depois, a 31 de março, os generais de Minas botaram as tropas na estrada para o Rio de Janeiro e o Exército enviou uma senha à embaixada dos Estados Unidos: “O balão foi lançado!”.

Caso houvesse reação provinda do “dispositivo militar” alardeado pelo general Assis Brasil, chefe da Casa Militar da presidência da República, que pouco depois se transformaria numa chanchada de péssimo gosto (não havia um soldado sequer disposto a enfrentar colegas de farda), o governo norte-americano estava preparado para fornecer armas e munições a militares e policiais brasileiros. “Além disso, uma força tarefa de porta-aviões estava a caminho do Atlântico sul, aguardando o aviso de Gordon quanto à conveniência ou não de atracar em portos brasileiros”, relatou Langguth.

Uma hora antes da meia-noite de 31 de março, o relutante general Amaury Kruel, cuja lealdade ao presidente Jango era de conhecimento público, finalmente aderiu ao movimento golpista para tranqüilidade dos colegas estrelados. Nessa mesma noite o embaixador Lincoln Gordon visitaria o ex-presidente e senador Juscelino Kubitschek, com o pedido de que servisse de intermediário junto ao Congresso Nacional, “a fim de dar ao novo regime uma aparência de legalidade”, opinou o autor de A face oculta do terror.

Bem ao contrário, a longa noite de chumbo se prolongou por vinte anos.

 

 

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Uma ideia sobre “50 anos nos contemplam (III)

  1. Célio Heitor Guimarães

    Belíssimo trabalho, grande Ivan. São pessoas (e talentos) como você que fazem falta à imprensa (escrita) paranaense.

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