7:4150 anos nos contemplam (I)

por Ivan Schmidt

 

Foi no dia 19 de março de 1964, uma quinta-feira à tarde, que aconteceu na cidade de São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, convocada e organizada pela alta burguesia alinhada a instituições tradicionais como a Sociedade Rural Brasileira e a União Cívica Feminina. Os participantes (alguns dizem que eram 500 mil) começaram a se aglomerar na Praça da República desde o meio-dia e a marcha propriamente dita iniciou pontualmente às 16h em direção à Praça da Sé, passando pelo Teatro Municipal e Viaduto do Chá.

Na primeira fila marchavam os senadores Auro de Moura Andrade, então presidente do Senado e Padre Calazans, os deputados federais Cunha Bueno, Herbert Levy, Plínio Salgado e a deputada estadual Conceição da Costa Neves, uma das líderes do movimento ao lado da primeira dama Leonor Mendes de Barros, mulher do governador Ademar de Barros e muitos outros políticos e autoridades. O governador, temendo o fracasso da marcha, preferiu sobrevoar o centro da cidade a bordo de um helicóptero do governo.

No palanque armado na Praça da Sé, os vários oradores denunciaram a ameaça de golpe contra a democracia em gestação por uma frente de entidades sindicais e políticos de esquerda que haviam dominado o governo João Goulart, transformando o presidente numa espécie de refém de suas cartilhas ideológicas.

Alguns meses depois o deputado Cunha Bueno, um dos entusiastas da marcha declarou que a mesma havia sido “o ponto de partida para a Revolução de 1964. Não ponho, absolutamente, em dúvida a disposição de um significativo número de militares do mais alto escalão que estavam já dispostos a fazer qualquer coisa a fim de impedir que o país continuasse marchando aceleradamente para o caos”.

A marcha foi organizada em poucos dias com a pronta colaboração de senhoras católicas ofendidas por recente declaração do presidente da República, ao se referir a um grupo de mulheres de Belo Horizonte, que de terço na mão haviam impedido um comício de Leonel Brizola: “Não é com rosários que se combatem as reformas”, teria dito Jango.

Era patente também o óbvio mal-estar reinante entre os principais comandantes militares, alguns dos quais relutavam em descumprir o dever de defender a Constituição e, por conseguinte, o presidente eleito de acordo com os princípios da democracia, ao passo que outros pouco mais faziam senão conspirar pela queda de Jango.

Em janeiro daquele ano Jango decretara a revisão dos níveis do salário mínimo, conforme relato do historiador Hélio Silva no livro 1964 – Golpe ou Contragolpe? (Civilização Brasileira, RJ, 1975), sendo procurado pelas lideranças sindicais que o convenceram a convocar um ato público de prestação de contas, que “ao mesmo tempo buscasse o apoio popular para seu programa de reformas de base”, pressionando o Congresso a votar os respectivos projetos.

Uma comissão foi formada para organizar o evento, integrada por Osvaldo Pacheco da Silva, presidente da Federação Nacional dos Estivadores e pelos deputados estaduais Hércules Correia e José Talarico, este secretário-geral do PTB-GB e assessor de Jango para assuntos sindicais. A data foi fixada para a primeira quinzena de março e o local não poderia ser outro senão o amplo espaço defronte a Estação Pedro II, da Central do Brasil, na avenida Presidente Vargas.

Ao mesmo tempo em que o comício era organizado, o então governador da Guanabara Carlos Lacerda e demais setores da oposição se uniam para dificultar sua realização. Segundo Hélio Silva, um dos argumentos mais utilizados pelos opositores era a presença confirmada do governador Miguel Arraes (Pernambuco) e do ex-governador Leonel Brizola (Rio Grande do Sul), não por acaso os estados em que o movimento pelas reformas de base estava mais avançado. Cogitava-se na época que a “Frente de Mobilização Popular iria levantar um palanque especial para Leonel Brizola e frontal ao que seria ocupado pelo presidente da República”.

Finalmente marcado para o dia 13 de março, grupos extremistas da direita e da esquerda passaram a agir para sabotar ou garantir a realização do comício. Cartazes eram rasgados ou queimados, panfletos distribuídos e até o enorme palanque sofreu uma tentativa de incêndio, numa guerra surda. O governo local fez de tudo para dificultar o trânsito, especialmente dos ônibus vindos dos subúrbios e de municípios vizinhos. Agentes provocadores de ambos os lados infiltrados na massa nunca tiveram tanto trabalho.

O historiador Hélio Silva registrou que “ao palanque, cercado de aparato militar, compareceram os ministros militares, outros ministros, senadores, deputados, autoridades e dirigentes de classe”, assim como “a presença de dona Maria Tereza Goulart foi solicitada pelos organizadores no sentido de descaracterizar o acontecimento do rígido aspecto político”.

Os oradores seguiram a orientação preconizada e discursaram sobre a necessidade de reformas. Quanto ao discurso presidencial, Hélio Silva anotou que Jango não foi diferente na ênfase dada à prioridade das transformações abrigadas sob o carimbo das reformas de base: eleitoral, administrativa, tributária, agrária, urbana, bancária, cambial e universitária. “O comício obteve sucesso total. Durante oito horas e quarenta e cinco minutos uma multidão, calculada por uns em duzentos e cinquenta mil e por outros em cento e cinquenta mil pessoas, permaneceu na praça, esperando a palavra do presidente que só foi ouvida depois de treze discursos”, escreveu.

No dia seguinte a Tribuna da Imprensa, jornal que tinha pertencido (ou ainda pertencia) ao governador Carlos Lacerda, dava amplo destaque a suas declarações: “Acho que o Congresso deve levantar-se e defender o que resta da liberdade e paz nesse país. Então as Forças Armadas compreenderão o que o povo já sentiu: que acima das ambições e leviandades de uma pessoa ocasional estão a Constituição e a paz do povo brasileiro”.

“Enquanto se formava a tempestade revolucionária, ainda há aparências de normalidade democrática”, admitiu o historiador, com os principais líderes políticos organizando suas forças para a eleição presidencial de 1965. Juscelino Kubitschek, Ademar de Barros e Carlos Lacerda (em disputa pessoal com Magalhães Pinto) visavam o cargo então ocupado por Jango. “O governador de Minas, já a esta altura chefe civil da conspiração, que mobilizava todos os recursos administrativos e militares do seu estado sustentava, no plano político federal, a posição de candidato à presidência, naturalmente incrédulo de que se realizasse a eleição naquele clima. De qualquer forma a UDN programava a convenção nacional, para a escolha de seu candidato, no mês de abril”.

A exaltação de ânimos nos meios militares crescia a cada momento, especialmente na Escola Superior de Guerra, na Escola de Comando e Estado Maior e no Estado Maior do Exército, comandado pelo general Castelo Branco, segunda maior autoridade na hierarquia militar, embora este alto oficial ainda fosse depositário da confiança do presidente da República e do ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro. Naquele momento Dantas estava hospitalizado para um procedimento cirúrgico que acabou se complicando, circulando o boato de que o presidente somente não o substituiu para evitar constrangimentos.

O general Ladário Pereira Telles comandava a I Região Militar e seu colega Oromar Osório a Vila Militar. O III Exército, sediado no Rio Grande do Sul, era chefiado pelo general Benjamim Rodrigues Galhardo, que segundo Hélio Silva gerava dúvidas na oficialidade quanto a posição que assumiria “face a eventual perturbação da ordem”. Aventou-se então a possibilidade de nomear para o respectivo comando o general Ladário Telles, que declarou aceitar se tivesse sob suas ordens a Brigada Militar do Rio Grande do Sul. A outra dúvida entre os generais leais ao presidente vinha de São Paulo, diante dos rumores de que o general Amauri Kruel, comandante do II Exército, “abandonaria o presidente João Goulart”.

No dia 26, quinta-feira santa, Ladário foi chamado de Friburgo pelo chefe de seu Estado Maior com a informação de grave indisciplina na Marinha, determinando a prontidão das tropas no Rio. Telegrafou a Jango que viajara a São Borja, pedindo seu regresso imediato. Praças da Marinha haviam se reunido na Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, cuja legalidade era discutida tendo em vista algumas manifestações consideradas subversivas e de caráter político. O ministro da Marinha, Silvio Mota, decretara a prisão dos organizadores do encontro em comemoração ao segundo aniversário da associação, e estes se rebelaram liderados pelo cabo José Anselmo dos Santos “sobre quem já existiam dúvidas de ser um elemento infiltrado para provocar”, revelou Hélio Silva.

O Ministério da Marinha expediu ordem de cerco e invasão do Sindicato dos Metalúrgicos, local do encontro, a fim de render os amotinados. O pelotão de fuzileiros navais encarregado de cumprir a ordem, no entanto, aderiu à rebelião piorando ainda mais a situação. A Marinha pede a imediata intervenção do Exército, mas o ministro da Guerra está hospitalizado. Os entendimentos prosseguem e o general Morais Âncora, comandante do I Exército, tem opinião contrária alegando tratar-se de problema disciplinar de outra força.

Quando Jango desembarcou no Rio procedente de São Borja, o ministro Silvio Mota já havia apresentado o pedido de demissão, nomeando-se o almirante reformado Paulo Mário Rodrigues como novo titular da pasta. Jango determina ainda que o ministro Amauri Silva (Trabalho), brigadeiro Francisco Teixeira, coronel Ciro Labarthe e o deputado José Talarico entrem em negociação com os amotinados para convencê-los a deixar o local.

Detidos por várias horas no Batalhão de Guardas em São Cristóvão os marinheiros são libertados, partindo em passeata na direção do Ministério da Marinha. Jango despachou o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, ao encontro dos marujos com a missão de demovê-los, mas tudo foi em vão. Segundo Hélio Silva “a crise estava se instalando definitivamente e deste episódio até a comemoração dos sargentos no Automóvel Clube no dia 30, ela só faz se desdobrar”. Voltaremos ao assunto.

 

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Uma ideia sobre “50 anos nos contemplam (I)

  1. Emerson Paranhos

    Muito bom, porém o autor poderia citar o que faziam e o tamanho da influencia de Luiz Carlos Preste e os chefes do PC do B,. Isto é da esquerda articulada e comprometida com o que depior acontecia no mundo,. a qual dizia alto e em bom som que já tinham o presidente nas mãos, faltava apenas a tomada do governo e do poder. (Cartas de Luiz Carlos Prestes). Como ele cita quem organizava o lado demcratico, deveria citar quem organizava os procedimentos golpistas da esquerda =- indisciplina dos marinheiros, movimento sindical etc.

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