7:24Chile confirma a democracia

por Ivan Schmidt

 

A história tem lá seus caprichos trágicos ou farsescos – está suficientemente provado – mas nem sempre seguindo o axioma de Karl Marx, para quem o que aconteceu antes como tragédia acabaria se repetindo como farsa. Não foi assim, pelo menos no tema que pretendo tratar nesse espaço, isto é, a segunda eleição da socialista Michelle Bachelet à presidência do Chile, retomando a hegemonia de representantes da democracia cristã e do socialismo que exerceram o cargo desde a queda do ditador Augusto Pinochet: Patrício Aylwin, Eduardo Frei Ruiz-Tagle, Ricardo Lagos e a própria Michelle.

O presidente atual, o conservador Sebastián Piñera não conseguiu levar a administração federal a bom termo e o candidato apoiado pelo governo, sem a menor chance, desistiu algum tempo antes do primeiro turno.

A candidata da direita, senadora Evelyn Matthei, conseguiu levar o pleito para o segundo turno realizado no domingo passado (15), quando amargou derrota acachapante, cuja diferença de votos (62,16% para Bachelet e 37,83% para Matthei) teve uma contundência até então desconhecida em eleições presidenciais depois da sangrenta ditadura militar.

A imprensa internacional classificou a eleição chilena como vitória da democracia e suas instituições, baseada nas demonstrações de respeito e dignidade de quem venceu e, principalmente dos derrotados, o presidente Sebastián Piñera e a senadora Evelyn Matthei, que imediatamente após a proclamação do resultado oficial fez uma visita à eleita no hotel em que estava instalado seu comitê de campanha. O presidente telefonou no domingo e, na segunda-feira, foi tomar o café da manhã na residência de Michelle Bachelet.

O El Pais de Madri registrou que o trato cortês entre os que disputaram a eleição ocorreria da mesma forma se o resultado tivesse sido outro, ressaltando que isso se deveu à relevância das instituições democráticas sobre a personalidade de seus líderes.

Os analistas dizem, no entanto, que uma das tarefas mais difíceis da presidente eleita será falar diretamente aos 58% de eleitores que preferiram ficar em casa (foi a primeira eleição com voto facultativo no Chile). Outro aspecto não menos preocupante é que a presidente decerto terá um preço alto a pagar para manter unida a coalizão da Nova Maioria, que substituiu a Concertação, formada pelos blocos democrata cristão, socialista e comunista.

Bachelet, porém, reconheceu herdar “uma economia saudável, uma democracia estável e uma cidadania consciente de seus direitos”, segundo o diário espanhol. Presume-se, por outro lado, que a problemática da presidente será também intensa no lado político-institucional, porquanto um dos pontos mais debatidos na campanha foi a nova Constituição. Do total de 13,6 milhões de cidadãos aptos a votar, compareceram às seções eleitorais apenas 5,7 milhões no segundo turno (dos quais 62% votaram em Michelle), num país com 17,6 milhões de habitantes.

Não há motivos para empanar a comemoração da vitória, embora os partidos conservadores e a corporação empresarial devam sugerir que Bachelet não conseguiu reunir em torno de si a maioria da população e, por esse motivo deverá ter dificuldade para levar adiante o programa de reformas que anunciou. A presidente dispõe de maioria folgada para implementar as reformas: na eleição legislativa de novembro a Nova Maioria elegeu 68 deputados num total de 120 e 21 senadores dentre os 38 integrantes dessa instância.

Durante o governo de Sebastián Piñera, mesmo com alguns sinais de comprometimento nos últimos meses, devido a fatores externos, o Produto Interno Bruto cresceu em média 5,5% ao ano, sendo criados 150 mil novos empregos e mantida a taxa de desemprego em 5,7%. Os formuladores do projeto governamental de Michelle Bachelet esperam o crescimento de 4,9% em 2014 (a presidente toma posse em 11 de março), mas os oposicionistas calculam um percentual mais baixo, entre 4% e 4,2%, alegando que a desaceleração do crescimento chinês reduzirá os preços do petróleo e dos minérios oriundos da América do Sul.

A economia do país andino, que desde Pinochet optou pela abertura comercial ao mercado exterior e a privatização de empresas estatais, tem seu principal suporte na exportação de cobre, cujo preço internacional poderia cair de US$ 3,3 para US$ 3,05 por libra.

O Banco Central do Chile corrigiu a projeção de crescimento do PIB desse ano para 4,1%, o menor índice em quatro anos, pintando também um quadro fiscal restritivo com aumento do gasto público, diminuição do consumo e geração de empregos, além do menor orçamento da década. Assim, o maior desafio da nova presidente será equacionar o problema da má distribuição de renda num país em que os 5% mais ricos da população ganham 257 vezes mais que os 5% mais pobres.

Bachelet pretende resolver a questão com uma profunda reforma tributária, aumentando a taxa de impostos das empresas de 20% para 25% em quatros anos. Outro gargalo será a criação do sistema público de ensino superior gratuito, hoje inteiramente entregue à iniciativa privada.

Voltando ao parágrafo inicial e entrando no estrito campo da política, a segunda eleição de Michelle Bachelet, quinta presidente da ala de centro-esquerda chilena desde o final da tragédia do golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, em setembro de 1973, não caracteriza absolutamente nenhuma volta em forma de farsa. A diferença de votos entre Michelle e Evelyn, ou seja, entre socialismo democrático e direita conservadora, parece consolidar a opção política da maioria dos eleitores.

Ambas filhas de generais da Força Aérea, Fernando Matthei (pai de Evelyn) foi figura de destaque da camarilha chefiada por Pinochet, ao contrário de Alberto Bachelet (pai de Michelle), que serviu sob o presidente Salvador Allende e, por esse motivo foi preso e torturado, morrendo na prisão em 1974. A própria Michelle também sofreria na carne a violência dos cárceres da ditadura fascista implantada no Chile.

Para o diplomata e intelectual Heraldo Muñoz, autor do livro A sombra do ditador (Zahar, RJ, 2010), “enquanto os processos avançavam inexoravelmente e a saúde do general (Pinochet) se deteriorava, Michelle Bachelet, a primeira mulher presidente na história do Chile, foi eleita em 15 de janeiro de 2006. O Chile seria governado por uma socialista, agnóstica, mãe solteira, vítima de tortura e ex-exilada política”. Segundo Muñoz, que foi embaixador do Chile no Brasil no governo de Ricardo Lagos, “era a maior das ironias – os comandantes das Forças Armadas chilenas teriam de prestar contas a uma das vítimas de Pinochet”.

Pois a ironia (e não a farsa) se repetirá, embora a maioria dos oficiais da guarda pretoriana do ditador agora esteja de pijama ou no cemitério, ao passo que Michelle voltará ao governo, reconhecida e aclamada pelo povo.

Outro dado significativo: o ditador Augusto Pinochet, tido como responsável perante o tribunal da história pela morte de mais de três mil cidadãos chilenos, morreu num domingo, 10 de dezembro de 2006, enquanto o mundo celebrava o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Isso sim é uma farsa.

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Uma ideia sobre “Chile confirma a democracia

  1. antonio carlos

    O Chile está nos dando um belo e concreto exemplo de democracia, lá os governantes não tem a necessidade de tomar o poder, e de não mais querer largar dele. A alternância democrática não faz mal aos chilenos, hoje elegeram uma socialista, amanhã elegerão um socialdemocrata ou conservador. E acreditam tanto na democracia, que acabaram com o voto obrigatório. Isto sim é que é depositar fé na democracia.

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