8:42Querido Papai Noel

por Michel Laub

 

Em mais este Natal cristão, dê um presente ao meio cultural brasileiro fazendo com que:

– A disciplina de interpretação de texto se torne diária em todas as escolas, de preferência em aulas longas e sem direito a ir ao banheiro.

– Não se atribua valor automático ao que não necessariamente tem valor: o novo em relação ao velho, o denso em relação ao simples, o pessimista em relação ao otimista.

– Deixem Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Caio Fernando Abreu em paz.

– Não haja mais chamadas jornalísticas do tipo “O evangelho segundo Clarice”, “Em busca do Rosa perdido” ou “Caio F de A a Z”.

– Cronistas parem de escrever sobre pesquisas sexuais feitas com ratos.

– Cineastas parem de botar a culpa de seus insucessos no público.

– (Parem, também, de identificar sucessos de bilheteria com qualidade estética.)

– Trailers se abstenham de contar dois terços do filme e botar uma piadinha ao final.

– Resenhas se abstenham de contar três terços dos livros.

– Um único funcionário das livrarias de aeroporto, e também o dono que os contrata e orienta, e também o público que frequenta o ambiente e endossa com suas compras tristes a seleção de títulos das gôndolas e prateleiras, tenham algum resquício de gosto literário.

– Comediantes ruins não atribuam mais sua ruindade à ditadura do politicamente correto.

– (E ninguém mais use termos e construções como “politicamente correto”, “chorume”, “eu sou polêmico mesmo” e “ao menos ele teve o mérito de abrir o debate”.)

– Artistas, ensaístas e palpiteiros em geral evitem dizer que não fazem lobby, não participam de conchavos, não integram panelas e dão suas opiniões doa a quem doer (na maioria das vezes, dói só no fígado de quem ouve).

– Escritores parem de explicar a própria obra com conceitos que não são seus, e sim de alguma patrulha política, de gênero ou de departamento acadêmico.

– Críticos resistam à tentação de comentar livros de desafetos pessoais ou desafetos da namorada.

– Autores consigam se controlar e não respondam aos críticos. Entendo o impulso de provar superioridade intelectual, moral e -em casos raros- física, mas a melhor forma de fazer isso é com silêncio público e amargura que estraga a vida familiar.

– Volte a ser possível esquecer da existência de alguém, em vez de ser lembrado dela em links, retuítes e até posts na página de quem morreu.

– Volte a ser possível fazer ironia sem precisar explicá-la com reticências, pontos de exclamação ou emoticons.

– Volte a ser possível ser contestado sem acusar o contestador de baixar o nível da discussão.

– Acabe o culto intelectual às estatísticas e ao que dizem “pesquisas recentes”.

– Acabe o culto intelectual à pornochanchada (ok quanto ao outro culto a esse nobre gênero cinematográfico).

– O Congresso Nacional proíba os hologramas de músicos.

– Bandas de rock escolham –não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo– entre discurso de contestação aos poderes estabelecidos e cachês de publicidade.

– E letristas contratem revisores (dá só uns R$ 9 a lauda).

– Alguém explique por que tanta gente, deixando claro que paira acima da vulgaridade, passa o dia no Twitter comentando Faustão, “The Voice Brasil” e a passagem de Francisco Cuoco e sua namorada pelo Castelo de Caras.

– Alguém explique por que condenamos com tanta fúria a ostentação do Rei do Camarote nas mesmas timelines que ostentam, o tempo todo, os trabalhos que fazemos, os pratos que comemos e os lugares para onde vamos nas férias.

– E também por que alguém vai a um show apenas para registrar a performance do artista no celular, revendo-a mais tarde –se é que vai rever– numa tela pequena e com qualidade medonha de som e imagem.

– Anciões que ainda frequentam esses shows (oi) parem de gritar contra a nuvem porque o mundo era tão melhor antes, não é mesmo?

– Haja só um pouco menos de sarcasmo contra alvos fáceis, como catálogos de arte contemporânea.

– Não exijam de artistas que tenham opinião sobre tudo. Artistas têm o direito de ser omissos, alienados, incoerentes e burros.

 

*Publicado na Folha de S.Paulo

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