7:07Camelot tinha os pés de barro

por  Ivan Schmidt

 

Muito se escreveu e ainda se escreverá sobre os 50 anos do assassinato do presidente John Kennedy, de modo que vou retomar o tema com o auxílio inestimável do grande jornalista investigativo Seymour Hersh, hoje com 76 anos e, desde 1973, um dos principais colaboradores da semanal The New Yorker, em cujas reportagens denunciou uma série de escândalos cometidos pela CIA e FBI, quando não pelo próprio governo norte-americano.

Apenas para relembrar, foi esse repórter que publicou as primeiras informações sobre as atrocidades de soldados norte-americanos em My Lai, no Vietnã. Anos depois seria dele também o furo internacional sobre a tortura na prisão de Abu Graib, em 2004, após a invasão do Iraque. Assim, de reportagem em reportagem, Seymour tornou-se uma celebridade e contumaz ganhador de prêmios, dentre os quais o prestigiado Pulitzer.

Um dos assuntos elegidos de Seymour foi o período de Kennedy na presidência dos Estados Unidos e os infindáveis capítulos que encorparam a saga de Camelot, expressão espirituosa criada pela própria mídia para definir a atmosfera que circundava o charmoso o casal presidencial.

O resultado das investigações feitas pelo repórter foi o livro O lado negro de Camelot (LPM, 1998), lançado no Brasil um ano depois da publicação nos Estados Unidos. Com base em arquivos de jornais, biografias e depoimentos das principais figuras da época, Seymour escreveu sobre sexo, poder, espionagem, corrupção e bastidores da guerra fria, retratando o cinematográfico presidente como um homem frio e calculista, que girava em torno de si mesmo e somente chegara ao poder máximo no mais forte país do mundo pelas artimanhas do pai – Joe Kennedy – antigo embaixador na Grã-Bretanha, que tinha decidido fazer o filho John chegar à presidência da República.

Descendente de irlandeses, ganhar dinheiro parece ter sido a ocupação que dava mais prazer a Joe, escreveu Seymour, revelando que não se sabe quanto dinheiro ele ganhou e de que forma, o que “sempre foi um segredo, mesmo para sua esposa e os demais membros da família”. Nos anos 20 do século passado, na mesma época em que os agentes federais nada sabiam sobre Joe Kennedy, “começaram a verificar a chegada de enormes cargas de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos, estimuladas pela insaciável demanda americana por bebidas e pelo advento da Lei Seca”, acrescentou.

O espertíssimo Joe Kennedy foi um dos primeiros a obter posição de destaque na importação de bebidas alcoólicas e ao se convencer de que a Lei Seca logo seria extinta, organizou uma empresa de importação que serviu para aumentar ainda mais o lucro.

Quando o filho entrou na Casa Branca, em 1960, eram fortíssimos os boatos que apontavam o pai como um dos maiores contrabandistas de bebidas alcoólicas para os Estados Unidos, desde os primeiros dias de vigência da Lei Seca. O lado chocante é que esse tipo de atividade era dominado pelo crime organizado em Nova York, Newark, Chicago e outras cidades importantes.

Cego pela determinação de assegurar a eleição de John, o invencível Joe fez um acordo com Sam Giancana, chefe do sindicato do crime organizado em Chicago. O encontro foi realizado na sala de audiências de um dos mais respeitados juízes da cidade, e o acerto (jamais se soube a que preço), previa que os mafiosos cabalariam votos para Kennedy entre os filiados de Chicago e outras cidades dominadas pelo sindicato. Também se falou na arrecadação de contribuições para a campanha oriundas dos corrompidos fundos de pensão do Sindicato de Motoristas de Caminhão, manipulado pelo poderoso Jimmy Hoffa.

Seymour não temeu informar que o candidato vitorioso na eleição presidencial de 1960 e seu irmão Robert (Bobby) estavam conscientes de que o crime organizado tinha fornecido uma inestimável ajuda.

Afinal, a diferença dos 303 votos de Kennedy no colégio eleitoral, de acordo com o sistema ainda hoje adotado nos Estados Unidos, superou em 34 pontos o total necessário para garantir a eleição. Os mais graduados assessores de campanha do candidato derrotado, o republicano Richard Nixon, insistiram no pedido de recontagem de votos em muitas seções alegando fraudes no cômputo final, mas Nixon permaneceu inflexível em discordar da ideia.

Analisando os números da eleição, Seymour disse que Illinois foi essencial para a vitória de Kennedy, porque sem os 27 votos daquele estado no colégio eleitoral, o vencedor teria obtido uma maioria relativa de apenas sete votos sobre Nixon. Mesmo os mais entusiasmados com a eleição de Kennedy consideraram bastante suspeita a enorme maioria alcançada pelo democrata em Chicago.

Uma das fontes consultadas para o livro admitiu que “não houve falsificação de votos”, embora ninguém duvidasse dos “métodos” utilizados pelos homens de Giancana para persuadir os eleitores a votarem em Kennedy.

Força especial veio do cantor Frank Sinatra, amigo íntimo de Sam Giancana, a quem o magnata pedira que intercedesse junto ao chefe mafioso em defesa dos interesses da família. Essa informação foi dada ao autor do livro pela filha de Sinatra (Tina) num dos muitos depoimentos que colheu. Aliás, Tina produzira uma minissérie para a CBS sobre os episódios de 1960. O personagem que interpretava Joe, relatou Seymour, disse ao personagem que interpretava Sinatra: “A melhor coisa que você pode fazer é procurar essas pessoas que controlam o sindicato”. E numa das cenas subseqüentes Sinatra aparece transmitindo o convite a Giancana, recebendo sua aprovação. Tina também contou que seu pai era grande admirador de Kennedy.

O livro tem 510 páginas incluído o oportuno índice remissivo, e nele estão tratados quase todos os lances da presidência Kennedy até o trágico desfecho de 22 de novembro de 1963. A frustrada invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, as tentativas de eliminar Fidel Castro, a crise de Berlim e os entreveros com Kruschev, a crise dos mísseis, a pressão do serviço secreto e a entrada na guerra do Vietnã, são radiografadas com extrema preocupação de exibir a verdade em torno da lenda de Camelot, sem desprezar a farta crônica fornecida pela vida sexual do jovem presidente, que tinha tantas amantes quanto secretários e auxiliares diretos.

No epílogo, decorridos quase 25 anos do atentado em Dallas, Seymour concluiu que Jacqueline e Bobby “estavam convencidos de que o presidente fora abatido não por comunistas, como J. Edgar Hoover e muitos outros acreditavam, mas por uma conspiração doméstica. Mesmo que não tivessem uma ideia clara de quem comandara ou dos motivos por trás daquilo, um suspeito imediato era Sam Giancana, que desde o começo de 1961 fora ouvido pelo FBI a reclamar constantemente que fora passado para trás por Jack Kennedy depois de ajudá-lo a se eleger em 1960”.

Curiosamente, Robert se negou a testemunhar perante a comissão dirigida pelo presidente da Suprema Corte, o juiz Earl Warren. Em 11 de junho de 1964 o juiz enviou-lhe uma carta indagando se ele havia obtido alguma informação adicional ou tivesse algo a relatar à comissão. Dois meses depois chegou a resposta e nela o irmão do presidente assassinado garantia nada ter a declarar. Valia tudo para preservar a saga da família.

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