5:48A cidade do ódio

por Ivan Schmidt

 

Eu tinha acabado de descer de um ônibus da Pluma na antiga estação rodoviária de São Paulo, vindo de Florianópolis com escala em Curitiba, no amanhecer do dia 22 de novembro de 1963. Ao atravessar a rua percebi na banca mais próxima os jornais pendurados e as manchetes berrantes: Kennedy assassinado em Dallas!

Exatos 50 anos depois, ainda não foram esclarecidas as dúvidas sobre as causas reais da morte do então presidente norte-americano, por assim dizer, o inventor do marketing político e, por conseguinte, um dos protagonistas do estado do espetáculo. Assessorado por uma criativa equipe de jornalistas, publicitários e relações públicas, Kennedy criou em torno de si a imagem midiática do jovem vitorioso (foi o mais jovem presidente dos EUA até então), pai e marido amoroso, que a cada final de semana confiava a seus assessores a tarefa de convocar a imprensa para fotografá-lo em situações diversas, mas sempre evidenciando o lado romântico de Camelot e, porque não dizer, másculo, do heroi ferido na guerra.

Em meio à torrente de escritos sobre os 50 anos da morte de Kennedy, destaco o artigo de Yolanda Ponge no El Pais de terça-feira (19), uma retrospectiva como há muito não se via, aliás carimbada com a marca registrada do diário madrilhenho, um dos mais importantes do mundo. Yolanda abriu a matéria lembrando a aclamação dada ao presidente pela massa postada nas calçadas da rua Elm, minutos antes que uma bala destroçasse seu crânio “enviando-o ao panteão dos mitos aos 46 anos”.

Nellie Connaly, mulher do governador do Texas, que estava sentada no banco dianteiro virou-se para Kennedy e disse: “Veja só, senhor presidente, daqui em diante o senhor não poderá dizer que Dallas não lhe admira”.

John e Jacqueline tinham saído da Casa Branca naquela manhã com o tempo cinzento e chuvoso, em direção a Forth Worth, a oeste da capital texana. Pouco depois, quando o avião presidencial pousou em Love Field, nos arredores de Dallas, o sol estava aberto, levando os repórteres que acompanhavam  o presidente a constatar que a expressão criada por eles mesmos – “a temperatura Kennedy” – estava correta uma vez mais: onde o presidente ia, o tempo melhorava e se tornava agradável.

Nas instalações do FBI em Dallas os agentes federais faziam piadas sobre os panfletos que haviam sido jogados nas ruas na manhã da visita presidencial. Os panfletos diziam que Kennedy era um traidor, embora os habitantes da cidade ao abrirem os jornais depois do café da manhã, se deparassem com a saudação de página inteira “Senhor presidente, bem-vindo a Dallas”.

Contudo, Yolanda Ponge observou que para muitos “o anúncio era um péssimo exercício de sarcasmo, tendo em vista que Kennedy era acusado de agir como um títere de Moscou e traidor dos Estados Unidos”.

A cidade de Dallas tem cumprido uma longa saga desde a época em que a Ku Klux Klan marchava por sua avenida principal, desde que a liga anticomunista John Birch tinha lá uma de suas células mais vigorosas e desde que o general Edwin Walker foi convidado a deixar o Exército pela doutrinação direitista da tropa, indo viver em Dallas, onde hasteou a bandeira americana de cabeça para baixo na entrada da casa. Depois de 50 anos a cidade ainda convive com o estigma de ter-se transformado no cenário do crime que constrangeu a América.

Nessa sexta-feira a cidade fará uma catarse, pois está prevista uma manifestação pública em memória do assassinato do 35º presidente da nação cometido com um Mannlicher-Carcano de fabricação italiana, comprado por doze dólares e usado por Lee Harvey Oswald. Segundo a versão oficial da administração Johnson (o vice-presidente que sucedeu Kennedy), Oswald foi o autor dos disparos que mataram o charmoso estadista.

Hoje, escreveu a jornalista espanhola, os habitantes de Dallas, especialmente os 95% que ainda não moravam na cidade ou sequer tinham nascido no momento do crime, se perguntam se já não é hora de deixarem de pagar pelo infortúnio e pelo remorso de décadas. Stephen Fagin, diretor do Sixth Floor Museum, localizado no antigo depósito de livros de cujo sexto andar Oswald acabou com a vida de Kennedy, com um rifle de mira telescópica comprado pelo correio, lembrou que “Dallas percorreu um longo caminho para sarar suas feridas”.

Yolanda acrescenta que atualmente a cidade é uma ilha democrata rodeada por um mar republicano. “O prefeito Mike Rawlings, ex-presidente da Pizza Hut é democrata. Os juízes são democratas. E a xerife, Lupe Valdez, uma lésbica latino-americana”, citou Yolanda.

“Há motivos para muito desgosto, mas aquele assassinato é parte de nossa história”, explicou Fagin, concordando que a história ainda não foi elucidada por inteiro. Por sua vez, coordenador dos atos alusivos aos 50 anos da morte de John Kennedy, o prefeito Rawlings se esforçou para que os eventos propiciem uma celebração respeitosa à vida e legado do presidente. Desde o início da semana foram apagadas da rua Elm as cruzes brancas que marcavam os dois lugares em que o presidente foi atingido pelas balas – uma no pescoço, outra na cabeça e a terceira que ficou cravada no asfalto.

A artista gráfica Karen Blessen foi encarregada de criar um projeto artístico (Dallas Love Project) para cobrir a cidade com enormes corações, frases de boas vindas e lemas pacifistas, transformando-a em imensa galeria a céu aberto. Foi uma das formas escolhidas para tentar apagar a dor e a vergonha do passado. “Essa é a Dallas de hoje”, anotou Yolanda, concluindo que “a cidade do ódio não mais existe”. Tomara.

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