8:03Do Ceará para o inverno

por Sergio Brandão

 

 

Hoje ele deve estar perto dos 80 anos. Anda ligeiramente curvado, o passo é lento, mas com a cabeça que parece ser a sede da usina onde produz tanta vontade para continuar vivendo.

Sempre com uma conversa diferente e com uma indignação nova com o mundo aí fora. Imagino que em casa, entre filhos, netos e casamento, devem reconhecer o humor como sua principal qualidade. Me dá a impressão que um dia levantou e decidiu que  dali pra frente só se preocuparia com bobagens. Leva isso tão à sério, que quando reclama das coisas – que todos nós reclamamos, arruma um sorriso enquanto fala dela.

Veio do Ceará, na década de 60, tentar a vida em Curitiba. Uma época que Curitiba era uma máquina insuportável de fazer frio, em pleno inverno. Não esquece e conta a história com muita graça: seu primeiro dia na cidade, por coincidência a primeira geada daquele ano.

Abriu a mala e achou a camisa de manga comprida que ganhou e trouxe para os dias de muito frio. A camisa estava nova. Pensou: só numa cidade fria para usar uma coisa assim, para cobrir o braço. A pensão onde estava, ficava no centro, na Barão do Cerro Azul. Tinha que fazer uma caminhada até a Vicente Machado, onde agora está o Hospital São Vicente. Era ali o endereço do primeiro emprego.

Antes do café da manhã, sente uma sensação estranha ao se lavar. A água que saía da torneira doía. Parecia machucar a pele do rosto bronzeado com o sol do nordeste.

Toma o café com uma sensação desconfortável. Não sabia direito o que era. Imaginou que podia ser o cansaço da viagem. Não fazia nem 24 horas que estava em Curitiba e a distância era mesmo muito grande. Com a parada na rodoviária de São Paulo, a viagem durou quase uma semana. O desconforto foi aumentando e seu corpo começou a tremer. Imaginou que estava ficando doente. “Nunca tinha sentido aquilo” – pensou ele. Começou a ficar preocupado. Afinal, nunca tinha caído de cama.  Fez um breve comentário com o dono da pensão que disse que podia ser uma gripe, coisa comum em Curitiba no inverno. A esposa do dono da pensão lhe deu uma Cibalena e disse que logo estaria bom. Esperou mais um pouco e nada. A sensação ruim não passava. Cada vez pior.  “Preciso sair”, disse ele. Logo no meu primeiro dia não posso faltar. Tenho que me apresentar, conhecer as pessoas com quem vou trabalhar.

Pediu as informações sobre como chegar no endereço e saiu…

A partir deste momento ele diz que não sabe explicar exatamente o que houve. O impacto foi tão grande que a primeira sensação foi que estava morrendo. Ficou paralisado, frisado, congelado na porta da pensão, sem saber direito o que fazer. Tentava reconhecer aquele sentimento, mas nada lhe vinha à cabeça. O cérebro também parecia congelado. Não pensava direito. Ainda não tinha registrado aquela sensação. O desconforto que sentia lá dentro, enquanto tomava seu café, foi quadruplicado.

Aos poucos recobra os sentidos e percebe que é resgatado para dentro por alguém. Começa a entender o que está acontecendo quando ouve vozes em sua volta.

Era o dono da pensão com mais um hóspede dando tapinhas em seu rosto. Perguntam, como ele estava se sentindo? Diz que parecia estar tudo bem, mas não conseguia explicar o que era.

Acostumada com visitantes menos avisados, Curitiba nunca os poupou e nem aconselhou sobre suas características climáticas.

Por sorte, o dono da pensão, menos cruel que o inverno curitibano, se apiedou do cearense e lhe explicou sobre os rigores do inverno curitibano. Fez mais, emprestou dois casacos até que o ilustre cidadão cearense pudesse receber o primeiro salário e se “equipar” para aquela estação do ano. Adotar Curitiba como sua casa no inverno, na década de 60, não era assim, uma tarefa tão simples.  Os dois casacos apenas resolviam parte do problema.

O primeiro salário serviu para pagar o primeiro mês de estadia e o resto ficou para o que ele chama de “equipamento de inverno”. Luvas, sobretudo, ceroulas, calças de lã e camisetas. Ainda lembra do gelo nas poças d’água, logo cedo. Ia para o trabalho quebrando gelo. Nunca tinha visto aquilo e nem imaginava que pudesse existir. Algumas vezes chegou a se perguntar se estava mesmo no Brasil.

Diz ele que até hoje guarda a camisa da estreia em Curitiba. Já foi (mais prevenido) para a Europa, no período do inverno. Já viu neve em vários países, (a de Curitiba, em 75 não esquece). É que durante todos estes mais de 50 anos, se correspondia por cartas com alguns familiares, que nunca mais viu. Sempre contava alguma coisa sobre o que era sentir na pele o inverno do sul. Só as fotos da neve de 75 comprovaram o que dizia. Mesmo assim, muitos acharam que ele trocou as fotos pelas da viagem que fez à Europa.

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