por Xico Sá
A morte é apenas uma ressaca fatal, caro Lou Reed, uma ressaca de domingo para evitar a falta de jeito com a vida de segunda.
A derradeira ressaca sob o sorriso cretino da Velha da Foice mexicana.
Como lembrou o colega Ivan Finotti, a primeira canção do seu álbum inaugural, 1967, se chama justamente “Sunday Morning” (manhã de domingo).
Só acredito no supersticioso deus das coincidências. Não à toa morrerias neste dia.
A ressaca perfeita de um dia melancólico para partir deste lado selvagem como em um teletransporte. A doce paz mortal da ressaca domingueira.
O sol nunca mais te perseguirá, viejo Lou, pelas frestas do domingo. O mesmo sol que fez o carinha assassinar o árabe na praia da existência de messiê Camus, este outro monstro da canção silenciosa.
Tempo de assassinos.
A morte não passa de uma ressaca sem ereção –por que ficamos tão excitados de ressaca, mr. Velvet? Eis um dos mistérios da humanidade e a Laurie (aí contigo na foto) sabe do que estou falando.
A Lena chorou ao lembrar de um dia perfeito que te fez uma pergunta em uma coletiva. A Lena me disse: Francisco escreve algo sobre morrer mais um pouco aos domingos ou algo semelhante, foi o que entendi nos seus lábios sem o gloss das fracas bocas que fogem dos encontros.
A ressaca depois dos 40, viejo Lou Reed, é uma dengue existencialista. A ressaca fatal é como a beleza que senta no joelho de Rimbaud e passa.
A morte rebobina o VHS com a ferrugem e a fita enrolada das nossas trajetórias.
As manhãs mal-dormidas e infinitamente vividas com Ligia nas bordas do Parque da Aclimação pediam Lou Reed e a manteiga dos últimos tangos.
Voltemos ao teu concerto em SP, 1996. Havia passado o dia correndo atrás de um corrupto –retrato deste cronista como ainda jovem repórter investigativo- e com um ácido passei rapidamente para o lado selvagem do entendimento.
Walk On The Wild Side.
Em livre tradução: amava uma arisca índia que se alimentava de jungle music e desconfiança com os passos de urso do seu homem.
Bem antes, viejo, havia colhido flores vagabundas pelas ruas do Hellcife e comprado um vestido vermelho para uma dama. Com as flores em um saco de plástico a levei ao hotel mais barato do Centro. Enchi a banheira com as banalíssimas fulorzinhas e botei uma fita cassete com “Stephanie says”, a minha predileta do Velvet Underground.
Como esquecer uma tarde, dom Lou Reed, em que a invenção amorosa lembra a morfina e o torpor?
A morte é apenas uma letal ressaca, amigo, uma ressaca na qual a vida vai sumindo lentamente como em uma fusão do lado claro com o lado escuro.
Uma ressaca cuja intensidade nos livra daquela falsa promessa de ser um outro homem, de se regenerar e tantas outras juras.
A morte é uma bela e fatal ressaca à prova de mentiras. Vicious.
Sim, Stephanie, às vezes a gente entrega parte da vida a pessoas que só odiamos bem lá na frente.
É, caro Lou Reed, o amor é o sol que sapeca, quando menos se espera, a retina e os cílios postiços da descrença.
*Publicado na Folha de São Paulo
“Magician Magician, take me upon your wings
And gently roll the clouds away
I’m sorry, so sorry, I have no incantations
Only words to help sweep me away”
Magician, disco “Magic and Loss” de Lou Reed