9:38A morte, Lou Reed, é uma ressaca fatal à prova de mentiras

por Xico Sá

 

A morte é apenas uma ressaca fatal, caro Lou Reed, uma ressaca de domingo para evitar a falta de jeito com a vida de segunda.

A derradeira ressaca sob o sorriso cretino da Velha da Foice mexicana.

Como lembrou o colega Ivan Finotti, a primeira canção do seu álbum inaugural, 1967,  se chama justamente “Sunday Morning” (manhã de domingo).

Só acredito no supersticioso deus das coincidências. Não à toa morrerias neste dia.

A ressaca perfeita de um dia melancólico para partir deste lado selvagem como em um teletransporte.  A doce paz mortal da ressaca domingueira.

O sol nunca mais te perseguirá, viejo Lou, pelas frestas do domingo. O mesmo sol que fez o carinha assassinar o árabe na praia da existência de messiê Camus, este outro monstro da canção silenciosa.

Tempo de assassinos.

A morte não passa de uma ressaca sem ereção –por que ficamos tão excitados de ressaca, mr. Velvet? Eis um dos mistérios da humanidade e a Laurie (aí contigo na foto) sabe do que estou falando.

A Lena chorou ao lembrar de um dia perfeito que te fez uma pergunta em uma coletiva. A Lena me disse: Francisco escreve algo sobre morrer mais um pouco aos domingos ou algo semelhante, foi o que entendi nos seus lábios sem o gloss das fracas bocas que fogem dos encontros.

A ressaca depois dos 40, viejo Lou Reed, é uma dengue existencialista. A ressaca fatal é como a beleza que senta no joelho de Rimbaud e passa.

A morte rebobina o VHS com a ferrugem e a fita enrolada das nossas trajetórias.

As manhãs mal-dormidas e infinitamente vividas com Ligia nas bordas do Parque da Aclimação pediam Lou Reed e a manteiga dos últimos tangos.

Voltemos ao teu concerto em SP, 1996. Havia passado o dia correndo atrás de um corrupto –retrato deste cronista como ainda jovem repórter investigativo- e com um ácido passei rapidamente para o lado selvagem do entendimento.

Walk On The Wild Side.

Em livre tradução: amava uma arisca índia que se alimentava de jungle music e desconfiança com os passos de urso do seu homem.

Bem antes, viejo, havia colhido flores vagabundas pelas ruas do Hellcife e comprado  um vestido vermelho para uma dama. Com as flores em um saco de plástico a levei ao hotel mais barato do Centro. Enchi a banheira com as banalíssimas fulorzinhas e botei uma fita cassete com “Stephanie says”, a minha predileta do Velvet Underground.

Como esquecer uma tarde, dom Lou Reed, em que a invenção amorosa lembra a morfina e o torpor?

A morte é apenas uma letal ressaca, amigo, uma ressaca na qual a vida vai sumindo lentamente como em uma fusão do lado claro com o lado escuro.

Uma ressaca cuja intensidade nos livra daquela falsa promessa de ser um outro homem, de se regenerar e tantas outras juras.

A morte é uma bela e fatal ressaca à prova de mentiras. Vicious.

Sim, Stephanie, às vezes a gente entrega parte da vida a pessoas que só odiamos bem lá na frente.

É, caro Lou Reed, o amor é o sol que sapeca, quando menos se espera, a retina e os cílios postiços da descrença.

 

*Publicado na Folha de São Paulo

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Uma ideia sobre “A morte, Lou Reed, é uma ressaca fatal à prova de mentiras

  1. Vinhoski

    “Magician Magician, take me upon your wings
    And gently roll the clouds away
    I’m sorry, so sorry, I have no incantations
    Only words to help sweep me away”

    Magician, disco “Magic and Loss” de Lou Reed

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