19:24Fragmentos de Memória

por Mino Carta*

Janeiro de 1980, bem no começo, o ministro da Fazenda Karlos Rischbieter liga de Brasília. Curto e rápido diz: “Saio do governo, gostaria de conhecer o Lula, veja se você marca um encontro com ele para hoje à noite, passo por São Paulo antes de voltar para Curitiba”. Por que o pedido do ministro da Fazenda não me surpreendeu, pelo contrário, soou aos meus ouvidos como normal, justificado, corriqueiro até? Por que o cidadão Karlos é assim mesmo. Karlos, com K.
Lula concordou na hora, surgiu na minha casa secundado por Jacó Bittar. Karlos veio acompanhado por Armando Vasone, escudeiro fidelíssimo. Lula, in illo tempore, teria preferido pinga com cambucy, faltava no meu bar, tomaram uísque e ninguém se queixou. Foi longa conversa, pareceu-me que se conheciam desde sempre. Algum desavisado se habilitaria a supor que juntos jogavam morra no bar da esquina.
Falaram de tudo, abertamente, sem peias e com a leveza dos homens de boa vontade, despediram-se, horas após, com a cordialidade da simpatia mútua. No dia seguinte, Lula telefonou para comentar: “Cara muito legal este seu amigo Karlos, um idealista sincero”. Achei a definição perfeita e aquela noite faísca entre as boas lembranças da minha vida.
Karlos deixava o governo do ditador de plantão, João Figueiredo, ao descobrir, dorido nos precórdios, que sua carreira de servidor público atingiria o ponto final, bafejado, entre o fígado e a alma, pela percepção amarga do desentendimento irreparável entre as suas crenças e as funções a cumprir no ministério. No meu entendimento, tal foi o sentimento, a percorrer a zona misteriosa do idealista sincero.
Como homem público, assim enxergo Karlos Rischbieter: o servidor do Estado, acima dos governos contingentes, probo e competentíssimo, determinado e leal. Ao conhecê-lo, algo mais de trinta anos atrás, além do encanto que naturalmente suscita no interlocutor, apostei na dolorosa encruzilhada destinada a emergir à tona da sua vida. O jogo político não se coaduna com meu amigo Karlos, exigiria dele um esforço impossível, muito mais que monstruoso.
Este livro de memórias é a prova da análise que me permito formular. Enquanto ficou entregue ao serviço público na acepção mais direta, e sem as injunções da frequentação dos meandros da corte, Karlos mostrou a que viera. No ministério não teria condições de durar, mas, leal até o fim, e idealista sincero, antes de sair do governo entregou ao general Figueiredo um ousado documento, no qual apontava as razões de suas divergências e desenhava as soluções que considerava ideais. Letra morta, é óbvio, e nem por isso dispensável na interpretação da personagem. Cópia do texto, chegada às minhas mãos antes de sua saída, guardo-a na gaveta das recordações válidas.
O idealista sincero tem, no entanto, densidade especial em outro plano. Particular e íntimo. Creio na influência dos genes alemães, confirmados pela boa educação, no sentido completo na palavra. Karlos é, filosoficamente, um romântico, impregnado pela música e pela poesia, e nelas se apóia, talvez muito mais do que imagina. Arrisco-me a vaticinar que quem lerá este livro concordará comigo.

 

*Texto de apresentação do livro de Karlos Rischbieter “Fragmentos de Memória”

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