7:02A raquetada genial

por Ivan Schmidt

 

Muitas lições podem ser extraídas do recentíssimo episódio que reuniu o governador pernambucano Eduardo Campos e a ex-senadora Marina Silva, antecipando a probabilidade real da formação de uma chapa com seus nomes (a ordem de precedência na urna poderá ficar para mais tarde), para uma eletrizante disputa pela presidência da República em 2014.

 

Como se sabe Marina Silva, apesar de seu esforço, não conseguiu obter a licença regimental para oficializar a Rede Sustentabilidade como partido político, sob a alegação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que grande número de assinaturas de eleitores não foi comprovado em alguns cartórios.

 

No mesmo período, entretanto, o TSE permitiu o registro de dois novos partidos, o Solidariedade do deputado federal Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força, que abandonou o PDT para formar seu próprio bloco. Bem conhecido pela prática pouco ortodoxa de sua atuação parlamentar, Paulinho não teve o menor embaraço para registrar o partido, pois sequer um único cartório localizado na mais longínqua região do País contestou qualquer garatuja nas listas de apoio.

 

O mesmo aconteceu com o PROS – seja lá o que for que isto queira dizer – iniciativa de um político do interior de Goiás, não por acaso o maior beneficiado pelos parlamentares que aproveitaram o prazo limite para a mudança de legendas. Talvez o fato ajude a explicar a cerebral decisão anunciada pelo presidente do citado partido em ingressar na base partidária do governo.

 

Depois de décadas de observação do comportamento de nossos políticos e da ligeireza com que esses abnegados e sofredores heróis da pátria trocam de camisa (opa!) de partido, sou forçado a admitir que nunca dantes neste país, soube que um desconhecido ex-vereador de Goiás (ou de qualquer outra parte) tivesse condições de coletar centenas de milhares de assinaturas a fim de pedir o registro de nova agremiação política.

 

Para dizer pouco, o multitudinário homem público tem cacife para chegar tranquilamente ao governo de seu estado, ou em hipótese pouco mais ambiciosa, disputar a presidência da República sem fazer feio. Pombas, Marina que foi senadora, ministra e candidata à presidência da República com 20 milhões de votos, se esfalfou e não conseguiu angariar as 500 mil assinaturas (é esse o número?) para registrar a Rede Sustentabilidade.

 

Estranhamente o fenômeno goiano, um autêntico Houdini — sem que ninguém soubesse – multiplicou suas brigadas e as espalhou pelo território brasileiro, tirando da cartola o cumprimento da exigência da legislação eleitoral. Paulinho fez o mesmo, embora os maledicentes de plantão tenham plantado a suspeita da utilização na empreitada, mesmo que em horas de folga, de alguns milhares de integrantes da gigantesca estrutura sindical a ele subordinada. Pura sacanagem com o antigo jogador de várzea em Londrina.

 

Dentre as lições que podem e devem ser aprendidas do episódio da filiação de Marina Silva ao PSB, dirigido pelo governador Eduardo Campos, virtual candidato à presidência e quarto colocado nas pesquisas de intenção de voto, atrás de Dilma, Marina e Aécio Neves, a mais mesquinha e abjeta foi a tentativa do grupelho de cientistas e analistas políticos (muitos deles auto-proclamados) e, em muitos casos, rábulas contratados a peso de ouro para o serviço sujo, cuja pauta única consistiu em tratar a ex-ministra como um zero a esquerda.

 

Poucas horas antes da filiação de Marina, o oficioso ministro do Marketing do Palácio do Planalto, João Santana, deitou falação sobre o favoritismo de Dilma ao profetizar que a reeleição está no papo já no primeiro turno, mesmo porque os pretensos competidores são nada mais que “anões” políticos. Ora, partindo de um profissional que deveria, por dever de ofício, balizar-se pela ética e respeito aos semelhantes, tal afirmação é de um descaramento oceânico.

 

Mas, como estamos no Brasil, onde a política é uma espécie de terra de ninguém na qual, em rigorosa proporção de igualdade, espertalhões e subservientes conquistam os primeiros lugares da fila a custa de sopapos e rasteiras, não raro literalmente, tudo é permitido.

 

Não foi sem motivo que Marina ventilou a ideia de que o comportamento político do  governo e de seu principal partido, o PT, passam a impressão de estarem contaminados pelo “chavismo”, com o objetivo de dificultar ou impedir a formação de novas forças políticas. Não estaria mal se tivesse dito “peronismo”, esse tumor maligno que sufoca a democracia argentina desde os anos 30 do século passado.

 

Aqui, Marina diz tratar-se de uma briga de marqueteiros, tipo Davi e Golias. E uma de suas certezas é que nessa guerra ela é sempre comparada com o pequeno Davi.

 

A raquetada desferida pela humilde mulher da floresta na cara dos politiqueiros que anseiam se eternizar no poder, como se esse fosse um direito inalienável (as raposas, como reforçaria Eduardo Campos), foi o lance mais genial das últimas décadas. Lula, para chegar à presidência sem ser importunado pela sombra dos ricos e poderosos, resignou-se a colocar o jamegão no compromisso pelo cumprimento dos contratos, sem mudar uma vírgula.

 

No final dos oito anos de mandato, surfando a onda de demagogia e boçalidade adubada pelos inúmeros títulos de “doutor honoris causa” recebidos mundo afora, dizia sem esconder o ar de empáfia, que os empresários jamais ganharam tanto dinheiro como em seu governo. Os ricos agradeciam mandando gravatas de seda, charutos cubanos e champanhe francês.

 

Campos e Marina resolveram primar pela independência e liberdade de pensar e agir, valendo-se eles próprios dos condutos que propiciaram a aproximação: o desembarque do PSB da aliança e a obstrução ao funcionamento da Rede. O governador de Pernambuco, o melhor avaliado dentre seus colegas, anunciou o rompimento com o governo, decerto para alicerçar a candidatura à presidência. Mas é solar a evidência de desapontamento com os rumos políticos, econômicos e administrativos da atual gestão.

 

O tom do discurso de Campos subiu, apesar de sua aparente fleuma e afetividade, e ele assegurou que a aliança com Marina Silva vai mostrar à sociedade que é possível “fazer política com decência”. Tudo isso sob o olhar sereno e um tanto zombeteiro da filha espiritual de Chico Mendes, que deve estar gargalhando no túmulo.

 

O governador afirmou em entrevista ao programa do ex-prefeito Mário Kertész numa emissora de rádio de Salvador (reproduzida pelos jornais no meio da semana), que “chegou a hora de a gente aposentar um bocado de raposas que estão enchendo a paciência do povo brasileiro. Elas precisam ir para casa para o Brasil seguir em frente”. A intenção não é nova e nada fácil, porque há raposas em demasia na política brasileira, e a longevidade desses mordedores peludos é algo assustador.

 

Eduardo tem razão. As raposas políticas infestam Pindorama desde o alvorecer da República, embora sua inspiração e enraizamento na estrutura de poder tenham brotado já no império. “As armas e os barões assinalados”, enxergava Camões mesmo com apenas um olho bom.

 

Até pouco tempo ainda havia quadros originários da ditadura varguista militando na política brasileira e, por incrível que pareça, hoje, tanto no primeiro escalão do governo quanto nas bancadas do Congresso ainda se disfarçam notórias figuras que engraxaram os coturnos dos generais de 1964.

 

Neto de Miguel Arraes, bom rapaz, político ficha limpa, governador querido por seu povo, o Planalto esperava de Eduardo aplauso e apoio. Alguém do governo palpitou que “o melhor lugar de Eduardo é o palanque de Dilma”, como se o governador não tivesse competência para voar com as próprias asas. Mais ou menos como fizeram com a própria Marina, que só serviu enquanto foi cordata mesmo submetida a inúmeros constrangimentos, que em determinado momento explodiram sua resignação e boa fé.

 

Muita coisa vai ocorrer até outubro de 2014 e, portanto, é preciso esperar com paciência os próximos lances. Mas, uma carta já foi colocada sobre a mesa: a coragem de Eduardo e Marina.

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