21:28O torcedor

por Eduardo Galeano

 

Uma  vez por semana, o torcedor foge de casa e vai ao estádio.  Ondulam as bandeiras, soam as matracas , os foguetes, os tambores , chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece , a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. Embora o torcedor possa contemplar o milagre, mais comodamente , na tela de sua televisão , prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos lutando em duelo contra os demônios da rodada.  Aqui o torcedor agita o lenço, engole saliva , engole veneno, come o boné , sussurra preces e maldições , e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita gol no seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o torcedor é muitos.  Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os juízes são vendidos, todos os rivais são trapaceiros.  É raro que o torcedor que diz:  “ Meu time joga hoje “. Sempre diz: “Nós jogamos hoje”. Esse jogador número doze sabe muito bem que é ele que sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme , do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.   Quando termina a partida, o torcedor , que não saiu da arquibancada , celebra sua vitória , que goleada fizemos , que surra a gente deu neles, ou chora sua derrota, nos roubaram outra vez , juiz ladrão. E então o sol vai embora, e o torcedor se vai. Nos degraus  de cimento ardem , aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o torcedor também volta á sua solidão , um eu que foi nós ; o torcedor se afasta, se dispersa, se perde e o domingo é melancólico feito uma quarta – feira de cinzas depois da morte do carnaval.

 

 

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Uma ideia sobre “O torcedor

  1. Rodrigo

    O fanático: “O fanático é o torcedor no manicômio. A mania de negar a evidência acaba fazendo que a razão e tudo que se pareça com ela afundem, e navegam à deriva os restos dos naufrágios nestas águas ferventes, sempre alvoroçadas pela fúria sem tréguas. O fanático chega ao estádio embrulhado na bandeira do time, a cara pintada com as cores da camisa adorada, cravado de objetos estridentes e contundentes, e no caminho já vem fazendo muito barulho e armando muita confusão. Nunca vem sozinho. Metido numa turma da barra-pesada, centopeia perigosa, o humilhado se torna humilhante e o medroso mete medo. A onipotência do domingo exorciza a vida obediente do resto da semana, a cama sem desejo, o emprego sem vocação ou emprego nenhum: liberado por um dia, o fanático tem muito de que se vingar. Em estado de epilepsia, olha a partida, mas não vê nada. Seu caso é com a arquibancada. Ali está seu campo de batalha. A simples existência da torcida do outro time constitui uma provocação inadmissível. O Bem não é violento, mas o Mal obriga. O inimigo, sempre culpado, merece que alguém torça o seu pescoço. O fanático não pode se distrair, porque o inimigo espreita por todos os lados. Também está dentro do expectador calado, que a qualquer momento pode chegar a dizer que o rival está jogando corretamente, e então levará o castigo merecido.” Eduardo Galeano, em Futebol ao Sol e à Sombra.

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