6:59A Igreja da periferia do mundo

por Ivan Schmidt

 

Naquele que me parece um de seus livros mais importantes, estou me referindo a Homens em tempos sombrios, do qual há uma recente edição de bolso da midiática Companhia das Letras, a filósofa judia-alemã Hannah Arendt (1909-1975) escreveu esplêndidos ensaios sobre personalidades que pontificaram na primeira metade do século passado, demarcando seu espaço pelo impacto causado por suas atuações (erros e acertos, segundo a autora) no campo das idéias, da política, da literatura e das artes.

 

Em suma, um livro cuja leitura é obrigatória por quantos queiram fruir a qualidade de uma pensadora de altíssimo nível intelectual, que tenho lido e relido nos últimos 20 anos sempre com renovado aproveitamento. Entre os ensaios incluídos no livro, escritos ao longo de vários anos, o que mais chamou minha atenção e acho que de muitos outros leitores também, é o que trata do cardeal Angelo Giuseppe Roncalli, eleito papa para governar a Igreja sob o nome de João XXIII.

 

Um papa que gravou seu pontificado pela convocação do Concílio Vaticano II (1961-1965), que sob a égide do aggiornamento trabalhou para que a Igreja abrisse as portas e janelas para a realidade depois de séculos de tradições obscurantistas. Hannah conta na abertura do ensaio que em visita à cidade de Roma por ocasião do concílio, ouviu de uma simples camareira uma das declarações mais estupendas sobre o ocupante da cadeira de Pedro: “Não é que foram escolher um cristão para ser o papa?”.

 

Depois de tantos anos da morte de João XXIII e dos pontificados de Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI, o colégio cardinalício escolheu em poucos escrutínios, talvez aquele que mais se aproxima – em vários pontos – de Angelo Roncalli, que também entrou para o conclave sem uma única citação de que poderia sair como o chefe da Igreja.

 

O até então cardeal de Buenos Aires, descendente de imigrantes italianos, Mario Jorge Bergoglio, chegou a Roma para a eleição do novo papa sem chamar a menor atenção, hospedando-se como das outras vezes no pequeno hotel destinado a receber clérigos em visita ao Vaticano. Dentre os papáveis, expressão usada pelos jornais romanos para identificar os cardeais com maiores chances, da mesma forma que ocorreu com Roncalli, o nome do argentino não aparecia sequer em último lugar.

 

Na bolsa de especulações em que todos erraram o nome de Bergoglio decerto figurava apenas como mais um entre dezenas de cardeais com direito a voto. E mais nada. Seguindo a tradição arraigada entre vaticanistas de “quem entra papa sai cardeal”, aquele de quem não se esperava coisa alguma apareceu na famosa janela do Vaticano para anunciar com um larguíssimo sorriso que era Francisco I, o papa do fim do mundo.

 

Afinal, um católico apostólico romano (os papas anteriores também o foram) que não teve pejo em se proclamar pecador como qualquer outro ser humano (nenhum dos anteriores teve o mesmo desassombro) e, afirmar em alto e bom som que sua primeira ocupação na chefia da Igreja seria a reforma total da Cúria Romana, a instância superior da qual procedem diretrizes de governo eclesiástico com o devido respaldo no Direito Canônico.

 

A coincidência foi altamente significativa, programada é claro, pois no mesmo dia em que o papa abriu oficialmente os trabalhos da reforma da Cúria, o Instituto para Obras da Religião (IOR), mais conhecido como Banco do Vaticano, pela primeira vez em 125 anos revelou publicamente o total do lucro obtido no exercício de 2012, ou seja, os 50 milhões de euros transferidos para os cofres da Igreja.

 

Francisco I assume sem o menor constrangimento o protagonismo no cenário político-religioso, roubando literalmente a cena dos grandes lideres mundiais que de fato se debatem com questões delicadas (Obama está sem dinheiro até para pagar o salário dos vigilantes da Estátua da Liberdade). A determinação do papa, porém, é que chegou a hora de tratar de assuntos transcedentais como fé, vida religiosa e esperança no futuro.

 

“Não há um Deus somente para os católicos, mas um Deus que é de todos”, revelou na entrevista de três páginas publicada no início da semana pelo jornal italiano La Repubblica, seguida a cada dia por um novo petardo. Do ponto de vista da teologia, a declaração de Bergoglio é uma ruptura com o pensamento do papa emérito, Bento XVI, que ainda cardeal e prefeito da Congregação para a Defesa da Fé (o novo nome da Santa Inquisição), publicou um documento oficial para afirmar, em resumo, que “fora da Igreja Católica não há possibilidade de salvação”, alargando ainda mais, especificamente, o abismo entre o catolicismo e as confissões protestantes históricas.

Percebe-se, então, que na contemporaneidade (seriam os tempos sombrios previstos por Hannah Arendt?), jamais um papa teve tanta disposição para falar sobre temas candentes para a humanidade, sobretudo aqueles que a própria Igreja se esforçou para manter em zona cinzenta. Pois agora a Igreja tem um papa falante e articulado, na verdade, o oposto daquele que na conversa informal com jornalistas que o acompanharam na viagem ao Rio de Janeiro, para a Jornada Mundial da Juventude, confessou tanto a indisposição quanto a falta de jeito para entrevistas.

 

“Os cortesãos são a lepra da Igreja”, afirmou Bergoglio de maneira surpreendente e áspera ao se referir ao narcisismo de muitas figuras da hierarquia da Igreja que aceitam a bajulação dos cortejadores. Além disso, criticou também o centralismo da Cúria sobre a Igreja e o Vaticano, o vaticanocentrismo, segundo suas próprias palavras. O entrevistador Eugenio Scalfari, cofundador do La Repubblica, perguntou se há cortesãos também na Cúria e a resposta papal foi afirmativa, embora tenha acrescentado que “a Cúria em seu conjunto é outra coisa”.

 

“É aquilo que no exército se chama de intendência, pois gerencia os serviços necessários da Santa Sé. Mas com um defeito, é vaticanocêntrica. Está voltada para os interesses do Vaticano, que em grande parte são interesses temporais. Essa visão se esquece do mundo que nos rodeia. Não compartilho com ela e farei todo o possível para mudá-la”, assegurou.

 

Os oito cardeais nomeados em abril por Francisco I para elaborar os documentos pontifícios que nortearão a reforma da Cúria devem apresentar nessa sexta-feira (4) o balanço de seu trabalho. O chamado G-8 dos cardeais (Giuseppe Bertello, Javier Errázuriz, Laurent Monsengwo, Reinhard Marx, Oswald Gracias, Sean O’Malley, Oscar Maradiaga e Georg Pell), recolhidos à intimidade da biblioteca dos aposentos papais, vão revelar as conclusões da comissão.

 

Em outras ocasiões Francisco havia dito que a “Igreja deve ser pobre e voltada para os pobres”, com seu foco voltado para as periferias do mundo e da fé. Como discursou no Rio, o papa quer atenção aos jovens e idosos, a seu ver os grupos humanos que requerem cuidados especiais inclusive das autoridades públicas. Outro dia falou sobre gays, aborto, celibato e mulheres servindo a Igreja.

 

E não duvidou ao afirmar ao jornalista italiano que o papa Wojtyla foi injusto quando excomungou e combateu os expoentes da Teologia da Libertação: “Certamente eles causaram incômodo à sua ideologia, embora muitos fossem crentes com elevado conceito de humanidade”.

 

O correspondente de El País em Roma, Pablo Ordaz, escreveu numa das excelentes matérias sobre o protagonismo de Francisco I que o veterano Scalfari, “ateu mas não anticlerical” encerrou a entrevista com a seguinte reflexão: “Esse é o papa Francisco. Se a Igreja se converter na que ele quer e imagina, uma época será mudada”.

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Uma ideia sobre “A Igreja da periferia do mundo

  1. antonio carlos

    Concordo com você Ivan, mas data vênia, o papa é Francisco, o I é por tua conta.

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