7:21A casa dos espelhos

por Ivan Schmidt

 

A presidente Dilma Rousseff fez o discurso de abertura da 68ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, tradição inaugurada pelo chefe da delegação brasileira, o gaúcho Oswaldo Aranha (1894-1960), que em 1947 presidiu a histórica sessão que aprovaria a partição do território da Palestina e a criação do moderno Estado de Israel.

 

Desde então, os presidentes brasileiros (ou os ministros de Relações Exteriores) têm a prerrogativa de fazer o primeiro discurso da assembléia, muito embora, a rigor, nenhum deles tenha sido mais relevante que o proferido pelo então representante patrício em defesa da criação de Israel, o que lhe valeu a eterna gratidão judaica e o nome duma rua em Tel Aviv.

 

O dado curioso é que anos antes Aranha havia sido chanceler durante o Estado Novo e, a certa altura, mandou exonerar o embaixador Souza Dantas que concedera passaportes a judeus-alemães que, pressentindo o desencadear da fúria nazista, começavam a fugir da Alemanha.

 

No ciclo militar, o único presidente que concordou em falar na abertura da assembléia das Nações Unidas foi o general João Figueiredo (28 de setembro de 1982) restabelecendo uma tradição prontamente seguida por José Sarney, que adorava uma ribalta. Alguém aí lembra algo importante que o vice-rei do Maranhão tenha dito a chefes de governo reunidos na ONU? Collor, Itamar, FHC, Lula e agora, Dilma, também foram, mas o que disseram que pudesse ter mudado alguma coisa no intricado terreno das relações internacionais?

 

Certamente leram discursos escritos por diplomatas, com o retórico recheio das platitudes e frases gongóricas que se esgotaram em sua elegância ineficaz. Dilma chegou lá motivada pela recente bananosa denunciada pelo correspondente do britânico The Guardian  no Brasil, sobre a espionagem eletrônica feita por órgãos de inteligência do governo americano em nosso País.

 

A presidente fez exatamente o que dela se esperava diante do contencioso aberto pela arrogância de quem ainda se imagina o gendarme do mundo e falou “duro” ao apresentar seu “protesto”, com efeito, marcado por “indignação” e “repúdio” à insolência, sendo que as expressões em destaque apareceram em quase todas as publicações importantes do mundo, que abriram espaço para repercutir o discurso de Dilma. A resposta de Obama, que falou em seguida, teve apenas um parágrafo e o mais que concedeu foi a preferência pela via diplomática para tratar do assunto.

 

Aliás, o mesmo pensamento expressado por nove entre dez diplomatas já retirados do serviço e, em grande medida, responsáveis pela respeitável tradição da política externa brasileira, para não falar na concordância de juristas e analistas de relações internacionais.

 

Entre as figuras relevantes que já transitaram pelo Itamaraty, vale citar a opinião do ex-ministro das Relações Exteriores, Francisco Rezek, que entrevistado no Roda Viva da segunda-feira passada (TV Cultura de São Paulo e retransmissão da E-Paraná), declarou ter a impressão de que o Brasil paga um mico planetário ao passar a impressão de surpresa, ou “que não sabia nada sobre a espionagem mundial”.

 

Ou, talvez, alguém do governo pensasse que com todo o sofisticado aparato eletrônico a disposição do pessoal da Agência Nacional de Segurança (NSA) e organismos similares da estrutura de inteligência dos Estados Unidos (seria o caso de Edward Snowden?), gastassem o tempo quebrando a cuca com os desafios da paciência ou do joguinho da velha?

 

Exigir desculpas do presidente norte-americano (Obama nem estava no prédio durante o discurso) e a proposta de “um marco civil multilateral para a governança e uso da internet e proteção dos dados que trafegam por ela”, foram os pontos altos e mais comentados do pronunciamento de Dilma. Entretanto, para a maioria dos veteranos  jornalistas curtidos na cobertura de eventos promovidos pela ONU, a voz corrente é que intervenções similares a da presidente brasileira, causam o impacto calculado para o momento para logo cair no esquecimento.

 

Em resumo, ficamos sabendo pelos bons serviços de um jornalista americano que vive no Rio com o namorado brasileiro, que publica suas matérias num jornal inglês, que o Brasil foi (ainda está sendo?) espionado pela NSA. A espionagem incluía até os e-mails passados e/ou recebidos pela presidente da República, além da bisbilhotice sobre dados confidenciais da Petrobras.

 

Na verdade, o repórter do jornal inglês teria recebido em Hong Kong, imensa quantidade de arquivos eletrônicos com gravações de documentos secretos da própria agência que lhe foram confiados por um servidor temporário da agência, hoje refugiado na Rússia, que simplesmente se proclamava enojado com a desfaçatez da instituição a que servira. Não são conhecidos, porém, os reais motivos pelos quais o correspondente do Guardian no Brasil foi escolhido para receber o suculento material.

 

Sem forçar a barra, é fácil perceber que o lance guarda íntima semelhança com os mais badalados romances ou filmes de espionagem, aliás, conforme escreveu o crítico literário George Steiner ao resenhar o livro escrito pelo ficcionista inglês Graham Greene e lançado em 1978 (O fator humano), cuja inspiração decerto veio da história de Kim Philby, o famoso agente duplo que trabalhou para os serviços secretos da Inglaterra e da extinta União Soviética. O enredo de Greene permitiu a Steiner um exercício metafísico sobre o que denominou “indústria da espionagem”, em particular, sobre a atuação dos agentes duplos.

 

Na época a espionagem ainda se valia de pessoas e o crítico dizia que o agente duplo “pode estar entregando materiais genuínos para as duas partes, e assim se torna uma das pontezinhas ou sinapses neuronais que mantêm o indispensável contato mesmo entre os inimigos nacionais mais encarniçados. Não raro os dois patrões, ou ‘controles’, sabem que estão sendo mutuamente traídos, mas há alguma vantagem nisso. Ao agente é concedida a imunidade desprotegida da terra de ninguém. Outras vezes, apenas um dos patrões sabe que seu agente é um ‘convertido’. (Durante a Segunda Guerra Mundial, esse conhecimento permitia que os ‘espias’ aliados infiltrassem dados falsos nas principais artérias da rede de contrainformação alemã)”.

 

Steiner lembrou a existência de muitos casos “em que nenhuma das duas partes, neste mútuo engano, jamais pode saber com certeza onde reside a lealdade ou a traição do agente. Um agente aparentemente duplo – estaria o jovem Stalin trabalhando igualmente para a czarista Okrana e para os bolcheviques? Estaria passando mais coisas para um lado do que para o outro? Teria retornado a seus primeiros recrutadores, depois de tê-los traído para os segundos? – escava e penetra irreversivelmente o labirinto de seus próprios objetivos secretos”.

 

Sabem os caros leitores que nesses tempos modernos o negócio da espionagem passou por mudanças radicais, embora a essência permaneça inalterada. Graham Greene, John Le Carré “e a vasta tribo que enxameia em torno deles” sabiam disso. Já escreviam sobre a existência de aparelhos capazes de medir o calor do exaustor de um tanque a 25 mil metros. “O jornalismo investigativo e o espírito agora universal da fofoca inundam as bancas de jornal com informações ultraconfidenciais. Revistas populares trazem diagramas mostrando como montar bombas nucleares. Existe alguma coisa realmente nova ou decisiva no material que os espiões mascateiam para seus clientes?”, indagava o resenhista.

 

O texto em foco foi publicado na edição de 8 de maio de 1978 da revista semanal The New Yorker e consta do livro Tigres no espelho (Editora Globo, RJ, 2012). A leitura da citação acima ficará mais compreensível se as expressões originais (bancas de jornal e revistas populares) forem substituídas porr internet. Nas primeiras linhas, Steiner anotou de forma um tanto sarcástica que a espionagem “desde o começo, foi um troço sujo”, ao lembrar que “os primeiros espiões de que temos notícia foram os que Josué infiltrou em Jericó”. Mas, com acertada perspicácia, deixou para o final a provocação aos leitores: “Josué precisava de quatro olhos disfarçados para lhe dizer que Jericó tinha muros e que seus moradores não receberiam bem uma invasão?”

 

A conclusão é, a meu ver, lição que vale pelo artigo inteiro à vista do conhecimento que se tem hoje da engenhosa arte de espreitar além das fronteiras: “Talvez toda a indústria da espionagem tenha se convertido numa brincadeira frívola, numa amarelinha mortífera, numa casa de espelhos”.

 

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