6:33As dignidades

por Célio Heitor Guimarães

 

O Brasil talvez seja o país do planeta com o maior número de dignidades. Dignidades como adjetivo, pessoas notáveis, excelências. Pois é, aqui temos dignidades saindo pelo ladrão – o trocadilho é apropriado – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Com um pequeno detalhe que nos distingue do resto do mundo: boa parte das nossas dignidades costuma frequentar as páginas policiais dos jornais, revistas, rádios e TVs e supre os cofres dos estrelados escritórios de advocacia do país.

 

Até aquelas dignidades que nada tem a ver com o assunto em pauta – na verdade, têm ou sempre poderão vir a ter, através de um futuro parecerzinho ou uma intervenção indireta também remunerada –, saem da toca e deitam falação. Na atual lambança do mensalão, foi o caso, aqui já referido, do insigne jurista Ives Gandra Martins. Primeiro, é preciso que se esclareça: o jurista Ives Gandra Martins não é um jurista qualquer. O dr. Gandra, supernumerário e principal porta-voz da Opus Dei no Brasil e ex-professor da Universidade Mackenzie, o grande templo da direita paulistana, é especialista em tudo, uma espécie de “Professor de Deus”. Oficialmente, devia ser tributarista, mas se apresenta também, quando necessário, como constitucionalista, civilista, comercialista, penalista, economista e processualista de escol, com pós-graduação em Direito Eleitoral, Direito do Trabalho, Direito Empresarial, Direito Ambiental, Direito do Consumidor, Direito Internacional e até Direito Extraterrestre…

 

Pois o magnífico dr. Gandra Martins, do alto de sua sabedoria, sem ter lido uma linha sequer dos autos do mensalão, decidiu que o mensaleiro José Dirceu foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal sem provas. Isto é, decretou que os procuradores da República Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel que denunciaram com consistência José Dirceu et quadrilha e sustentaram a culpa dos meliantes; o ministro-relator Joaquim Barbosa, que por mais de seis meses estudou minuciosamente o processo; e os ministros da mais alta Corte de Justiça do país, em sua composição original, que, por absoluta maioria de votos e ancorados em sólidos argumentos, condenaram a camarilha, são uns irresponsáveis, capazes de denunciar e condenar um inocente, sem nenhuma prova da prática delituosa. Também não acatou a chamada teoria do domínio do fato adotada pelo STF. É que os juízes da Suprema Corte não tiveram o cuidado de consultá-lo previamente. Não é uma graça? Graça coisa nenhuma; é de chorar. De raiva. E ainda se dá ouvidos e publicidade a um notável desse jaez! Valha-me, Santa Têmis!

 

E aí, de dignidade em dignidade, chegamos ao notabilíssimo ministro Celso de Mello. Alguns membros do Clube dos 15, universo de leitores desta coluna, estranharam não ter eu escrito nenhuma palavra sobre a recente atuação do magnânimo decano do Supremo. Mas que poderia eu dizer, além de tudo o que já foi dito? Que o excelentíssimo consumiu-se em um dos mais brilhantes e cansativos votos já proferidos no excelso pretório para sustentar o princípio constitucional da ampla defesa dos acusados, que não estava ali em questão? Ou que sua excelência renegou, naquele momento, o seu próprio veredicto, anteriormente exposto com igual ênfase, de que os mesmos mensaleiros formaram uma “quadrilha no núcleo mais íntimo e elevado de um dos poderes da República, com o objetivo de obter, mediante perpetração de outros crimes, o domínio do aparelho do Estado e a submissão inconstitucional do Parlamento aos desígnios criminosos de um grupo que desejava controlar o poder”? E que, com essa atitude, derrubou, num só golpe, toda a credibilidade que o Judiciário conquistara nos últimos meses?

 

No entanto, para suprir a alegada lacuna, reproduzo um episódio contado por outro notável, também jurista e também flor de pouco aroma, Saulo Ramos, que foi ministro da Justiça de José Sarney, de igual dignidade e flor do mesmo jardim. Sarney, presidente, deveria nomear um novo ministro do STF. José Celso de Mello Filho era assessor de Saulo Ramos no MJ. Saulo resolveu indicar o nome dele. A sugestão foi acatada e Celso ganhou a toga. Logo em seguida, bateu no Supremo ação que questionava a mudança de domicílio eleitoral de Sarney, do Maranhão para o Amapá. Os ministros da Corte votaram a favor do ex-presidente. Menos Celso de Mello.

 

O diálogo abaixo, entre Saulo Ramos e o ministro Mello, foi extraído do livro escrito pelo primeiro, “Código da Vida”. Escreveu Ramos:

 

“Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando:

 

“– Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente.

 

“– Claro, o que deu em você?

 

“– É que a Folha de S. Paulo, na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o Presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando chegou a minha vez de votar, o Presidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava do meu. Votei para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranquilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente.

 

“Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e perguntei:

 

“– Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney só porque a Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor?

 

“– Sim.

 

“– E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou a sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele?

 

“– Sim. O senhor me entendeu?

 

“– Entendi. Entendi que você é um juiz de merda!”

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5 ideias sobre “As dignidades

  1. antonio carlos

    Se o decano da Suprema Corte é um juiz de merda, o que podemos dizer dos demais, será que votam só para contrariar a Folha também? Mas agora fica difícil entender o voto do decano, talvez só para contrariar o Saulo Ramos ele votou a favor da Folha. Vá entender este decano, é capaz de condenar o seu Zé só para contrariar a nossa convicção de que ele está a favor do seu ex-colega de república.

  2. ÊITA!!!

    Rá!, meu caro: para quem é fãozão do senhor dos anéis, hobbits e harry potter e é “doutor pós graduado” nesse assunto, só podia sair isso que o saulo ramos disse dele…

  3. O Barão da Barão de Antonina

    A direita reaça se revolta contra o seu melhor quadro, o Gandra, maçon convicto/católico praticante/Tesoureiro da Opus Dei…só que o mesmo não é pau mandado dos Barões da Mídia. Ele sabe muito bem que essa “invencionice” Domínio do Fato era para pegar o Zé Dirceu, e ele como tributarista sabe que muitos dos seus clientes irão para a cadeia se essa tese prevalecer, o Gandra nada mais esta defendendo os seus clientes. Ponto.

    “FHC nega domínio do fato de filho com jornalista.”
    — Claus Roxin

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