8:40O FANTASMA

por José Maria Correia

 

De menino eu já era assim, um fantasma inquieto, desses que freqüentavam acanhados as salas vazias dos cinemas.

 

Eu costumava com meus silêncios assombrar o Arlequim, o Avenida, o Luz, o Ritz, o Palácio o Lido e o Gloria.

 

Outros, claro, havia.

 

Muito antes desses aprendi a gostar da arte no América e no Curitiba, deixado pela mãe nas matinês, quando ela ia dar aulas no Instituto de Educação.

 

Mas o primeiro que me recordo é o SEREIA,  lá na Praia Central de Matinhos. Ia com o avô e o pai e não tinha mais que quatro anos. Cada um levava uma cadeira de palha e a projeção era ali mesmo na areia da praia, sob as estrelas. De vez em quando uma onda invadia a platéia ao ar livre, nos cobrindo de espumas.

 

O projetor antigo era a manivela e o filme naturalmente mudo, o que não impedia o projetista de, na ausência do piano, improvisar um tema musical na base do assobio.

 

Vinham pescadores, caiçaras, os poucos veranistas e até alguns índios da Ilha da Cotinga.

 

Foi lá no antigo Santa Maria dos Irmãos Maristas que descobri os clássicos russos e japoneses, todos ainda em preto e branco, o que acentuava ainda mais as sombras das telas onde em algum canto eu me escondia deslumbrado com o clarão produzido pelos bastões de magnésio sobre os fotogramas dos samurais de Kurosawa e dos cossacos de Eisenstein.

 

Minha geração teve a fortuna de não conhecer a televisão na primeira infância,. Bebíamos na fonte original, sem propagandas, reclames ou noticiários infames.

 

Só tínhamos olhos para as telas dos cinemas.

 

Olhos sempre marejados com os dramas, as tragédias, as perdas e as desilusões amorosas que só conheceríamos na vida anos depois.

 

No Ópera um gongo gravíssimo cumpria a liturgia do anúncio da exibição, soava como um carrilhão de sinos da Igreja de Notre Dame: BOM BOM BOM…

 

Havia sempre uma expectativa e um frisson quando as cortinas espessas de veludo vermelho eram abertas solenemente.

 

Nada era vulgar, ao contrário.

 

No Arlequim, ambiente mais moderno, pinturas com figuras carnavalescas enormes de Pierrô e Colombina ladeavam a tela de seda especial.

 

Que procurava eu naquelas salas em total solidão em meio à profusão de hollywoodianos artistas, vilões chineses, índios de faroeste, detetives noir, duplas de comediantes, monstros terríveis, cantores de operetas, dançarinos, pianistas e mulheres inesquecíveis por quem eu não cansava de me apaixonar perdidamente?

 

Claudia Cardinale, Brigitte Bardot, Gina Lollobrigida, Rita Hayworth, Marylin Monroe, Elizabeth Taylor e Vivian Leigh.

 

Nunca descobri, mas ainda procuro.

 

Em qualquer lugar do mundo, em qualquer cidade há sempre aberta a porta de um cinema a me esperar.

 

Ainda na noite de ontem, disperso dos amigos que alegres iam ao animado restaurante, fui assombrar um cinema qualquer.

 

Estou habituado, filme cabeça, somente eu e minhas memórias, platéia deserta.

 

Já não há mais os gongos solenes nem as cortinas de veludo vermelho, tampouco pinturas de Arlequins ou os cartazes pintados à mão pelo gigante chamado de Maciste como o personagem.

 

Desinventaram os bastões de magnésio.

 

Só a solitude é a mesma na penumbra onde por tantas décadas tenho marcado esse encontro com o outro lado de mim mesmo.

 

Ou será que busco naquele ambiente perdido de escuridão, fantasia e imaginação reencontrar em um daqueles assentos o menino perdido que em tudo via encanto?

 

Aquele que um dia já fui antes de mim.

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