18:29A doce República do Tuatuari

por Antonio Callado 

 

Quando o Brasil em geral fica difícil de aturar, eu fecho os olhos um instante e me refúgio no pedaço do Brasil onde corre o Tuatuari. Não passa o Tuatuari de um riachinho, um humilde formador do poderoso Xingu, mas à sua margem os irmãos Villas Bôas – Orlando, Cláudio, Leonardo – estabeleceram a sede do Parque Indígena do Xingu, onde nossos índios passaram a receber o único tratamento vip que jamais tiveram ou terão. Membros da Expedição Roncador-Xingu, esses irmãos mágicos coroaram sua obra de desbravamento delimitando, criando aos poucos o Parque Indígena xinguano. Tão mágicos eram que, durante o efêmero governo Jânio Quadros, conseguiram que o presidente criasse oficialmente o Parque. Foi o que deixou Jânio de útil e de grande.

Nos anos 50, como jornalista, estive lá no Parque, com Orlando e Cláudio – Leonardo já estava prestando serviços à Fundação Brasil Central – e com Noel Nutels, que cuidava da saúde dos índios. Minha primeira visita durou uma semana, e fiquei estupefato de ver como, além do exaustivo trabalho de cada um, todos tinham tempo de acolher os índios, conversar com eles por cima de barreiras de língua, conviver com eles. Os curumins se juntavam de tardinha ao redor da rede do médico, não para qualquer consulta: para ouvirem o crooner que era Noel, para cantarem com ele. Redimindo as antigas bandeiras de ferro, fogo e escravidão, a bandeira Roncador-Xingu aderiu aos índios. Quando lá cheguei a primeira vez, cheguei de botas. Todos andavam de tênis ou sapato velho. Orlando andava quilômetros por dia, no mato, feito os índios: descalço!

Os Villas não conseguiram, durante seus decênios de vida na floresta a amansar os índios pela ternura, criar como queriam outros parques indígenas, em outras áreas. Mas o que criaram dura até hoje, neste país juncado de ruínas novas. Visitei de novo o Parque Indígena do Xingu em 1988, quando Ruy Guerra lá fazia um filme chamado Kuarup.

Fiquei entusiasmado ao ver como o Parque, com seus 26 mil quilômetros quadrados e cerca de 2 mil índios, resistia bem ao passar dos anos. Criação amorosa é assim, pensei, dura muito, ou talvez não acabe nunca. Lá encontrei um índio velho, antigo “capitão” ao tempo das minhas visitas. Era o chefe yawalapiti Kanato, que conheci atlético e garboso, casado com duas irmãs Kamayurs. Ele me garantiu que estava me reconhecendo, lembrando de mim, “amigo de Orlando”. Acho que falei com ele um tanto comovido, tentando reatar os fios com o passado e lembrando a Canato que tinha feito até fotografias dele quando moço, com duas belas esposas. Canato me respondeu, tranqüilo e orgulhoso: “Agora tenho três”.

Assim é o Parque Indígena do Xingu. Assim se vive naquela república dos irmãos Villas Bôas, para onde viajo quando o Brasil exagera.

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.