5:47Uma questão de opiniões

Por Ivan Schmidt

 

Marx escreveu com base em suas leituras de filosofia da história que o que antes acontecera como tragédia, em grande escala acabou se repetindo como farsa. A propósito das manifestações populares de junho houve lembrança dos episódios dos idos de 1968, quatro anos após o golpe militar, época em que ganhava impulso o movimento social pela derrubada da ditadura, especialmente entre os estudantes. Lembrados os fatos vieram as comparações entre passado e presente, embora a maioria das  opiniões (ou opiniães, como diria Guimarães Rosa) tenha preferido dizer que entre 1968 e 2013 a distância é a mesma que separa os pólos.

Pode ser. Mas que as coisas, incluindo a luta pela derrubada da opressão política, já foram bem mais românticas nesse país, não há a menor dúvida. Em 1968 houve a Passeata dos 100 mil, da Cinelândia à Candelária, liderada entre outros pelo universitário Vladimir Palmeira, que quase todo dia estava nas primeiras páginas dos jornais. Hoje não se sabe ao certo quem são os líderes de fato e de direito das manifestações, tendo surgido na mídia a insistente citação de um grupo com suposta tendência anarquista, denominado Black Blocs. 

Os alvos preferenciais do grupo de mascarados vestidos de preto, que não raro apelam para a violência e destruição do patrimônio público ou privado, são os governadores Sergio Cabral (RJ) e Geraldo Alckmin (SP), casualmente os estados onde foram e continuam sendo mais explícitos os protestos contra gestões consideradas ruins ou péssimas.

No Rio, um grupo de manifestantes permanece acampado no canteiro central da avenida em que se localiza o apartamento residencial do governador, e continuam ativos os grupos que invadem prédios públicos e depredam bancos e estabelecimentos comerciais. Cabral calçou as sandálias da humildade (diz ter aprendido com o papa Francisco), mas os cartazes de “fora!” continuam em evidência. O governador paulista, também tratado com incontida repulsa pela massa tem apelado para a força policial, assim como o colega fluminense.

O jornalista e escritor Zuenir Ventura contou na caudalosa reportagem 1968: o ano que não terminou (Planeta, SP, 2008), livro que vale a pena ler ou reler, a história pormenorizada da época em que jovens e adultos também foram às ruas (estimulados pelos acontecimentos de maio do mesmo ano em Paris), a fim de clamar pela retirada dos militares do poder. No dia 28 de março, num dos repetidos confrontos entre estudantes e policiais foi alvejado e morto por um PM o secundarista Edson Luís Lima Souto, que como centenas de outros colegas de baixa renda fazia as refeições no restaurante estudantil Calabouço. Foi o rastilho de pólvora.

Em meados de junho, escreveu Zuenir, o governo estava preocupado com a repetição dos acontecimentos de Paris, o que levou o general Costa e Silva a proclamar que enquanto estivesse no poder não permitiria que tais fatos acontecessem. Os estudantes respondiam que o Rio não repetiria Paris, mas “faria muito pior” açulando a paranoia dos militares.

Nos dias 19, 20 e 21 – quarta, quinta e sexta-feiras – o pau quebrou: “Na sexta-feira, principalmente, conhecida como ‘a sexta-feira sangrenta’, o Rio não ficou nada a dever à Paris das barricadas – e não por mimetismo, como temiam as autoridades militares. A motivação estava aqui mesmo”.

Nesse dia o povo se uniu aos estudantes em sucessivas batalhas campais contra a polícia, naquele que foi o maior movimento contestatório de todo o ciclo militar. Choviam paus, pedras, garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos de flores do alto dos edifícios, de onde jogaram até uma máquina de escrever. Vinte e três pessoas foram baleadas, quatro morreram incluindo um PM atingido por um tijolo e 35 outros ficaram feridos.

As batalhas prosseguiram noite adentro no centro da cidade, com barricadas espalhadas pela avenida Rio Branco e pelas ruas México e Graça Aranha. A sexta-feira sangrenta começara cedo, quando às 8h30, Vladimir Palmeira subiu num poste da praça Tiradentes para falar a umas 30 pessoas.

Era inevitável que o ânimo dos estudantes e da população se encaminhasse para um extraordinário evento – a Passeata dos 100 mil – que começou na Cinelândia sob a liderança de Vladimir Palmeira, então estudante de Direito e presidente da União Metropolitana de Estudantes (UME), cujo discurso foi feito das escadarias da Assembleia Legislativa. Colunas de estudantes chegavam de todas as partes da cidade, assim como políticos, intelectuais e profissionais liberais contrários ao regime.

No começo da tarde a passeata arrancou pela avenida Rio Branco na direção da Candelária, e de braços dados caminhavam ao lado de desconhecidos Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nana Caymmi, Tônia Carrero, Odete Lara, Norma Benguel e Norma Blum e muitos outros artistas. Ziraldo, Washington Novaes, Hélio Peregrino, Millôr Fernandes, Ênio Silveira, Flávio Rangel, Leandro Konder, Paulo Pontes e Vianinha estavam lá representando a intelectualidade, e nas proximidades da igreja padres aderiram à marcha. Um dos “revolucionários” presentes era Wellington Moreira Franco, ex-governador do Rio e hoje um dos inquilinos temporários da Esplanada dos Ministérios.

Vários estudantes haviam sido presos nos entreveros que se repetiram desde a morte de Edson Luís e, diante disso, numa de suas últimas palavras de ordem daquele dia, Palmeira, que anos depois foi eleito deputado constituinte pelo PT, bradou: “Vamos queimar ordeiramente uma bandeira dos Estados Unidos”, acrescentando uma bazófia: “A partir de hoje, para cada estudante preso, as entidades estudantis promoverão o encarceramento de um policial”. Dez minutos depois entrou num fusca e sumiu.

É possível supor que essa manifestação tenha contribuído grandemente para que os militares apertassem ainda mais o garrote sobre a sociedade civil, na verdade, o que se viu fartamente na ostensiva repressão promovida pelos generais Médici e Geisel, até o desgaste e corrosão da aura de intocabilidade do regime de exceção no governo Figueiredo. O sonho dos jovens, entretanto, não se realizou e a ditadura se estendeu por mais 16 anos até cair de podre em 1984.

Hoje não há uma ditadura a ser derrubada, embora quase três décadas depois da redemocratização seja também verdade que inúmeros governantes eleitos tenham demonstrado pouquíssima aptidão para cumprir o compromisso das urnas, isto é, honrar o mandato com ética e dignidade. E a rapaziada resolveu reclamar o que lhe é de direito.

 

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