7:36Um excelente começo

por Ivan Schmidt

 

Jorge Mario Bergoglio, o jesuíta franciscano, primeiro papa latino-americano (pinçado da periferia da Igreja ou do fim do mundo como ele próprio ironizou referindo-se à cidadania argentina), passou a semana no Rio de Janeiro, com breve escalada em Aparecida do Norte, para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que ajuntou cerca de um milhão de jovens católicos de dezenas de nacionalidades.

 

Fazia tempo que a Igreja não realizava um evento dessa magnitude, ademais do significado especial de ter ocorrido no Brasil, país que tem atualmente apenas 57% de sua população declaradamente católica, e da escolha da cidade menos religiosa do país, o Rio de Janeiro como palco do encontro.

 

Primeira viagem internacional do bispo de Roma como prefere ser chamado, pois abriu mão do título de papa que todos os antecessores fizeram questão de usar, Bergoglio está cumprindo compromisso previamente assumido por Bento XVI, antes da renúncia. O cenário encontrado certamente foi o mesmo programado para Ratzinger – os trajetos, os altares e até a quantidade de sermões e homilias programados – embora a motivação da visita tenha mudado radicalmente.

 

A razão principal é a personalidade diferente do antecessor de formação germânica, visão eurocêntrica, afeito a explicar a forma de pensar por meio da erudita categoria teológica. Com um carisma que faria inveja (embora a palavra não seja conveniente a papas) ao próprio João Paulo II, Francisco foi saudado com o entusiasmo previsível por uma multidão de participantes da Jornada Mundial da Juventude ao longo de todo o trajeto pelas ruas do Rio. Tal característica peculiar do pastor acabou sendo a marca registrada desde o percurso em carro de passeio até o primeiro discurso proferido no Palácio Guanabara.

 

Quando esse artigo estiver sendo lido, é provável que o local da missa de encerramento da JMJ tenha sido mudado para o altar erigido na praia de Copacabana, por razões climáticas.

 

Francisco chegou ao exercício do papado num momento de crise, a bem da verdade não iniciada no pontificado de Bento XVI e tampouco no de João Paulo II, mas que vem se arrastando há muito tempo como um polvo de muitos tentáculos, sufocando sob uma sucessão de escândalos financeiros e sexuais, sem falar em dilemas teológicos e comportamentais, especialmente, aquilo que a Igreja tem de mais sagrado, ou seja, a sua missão de transformar e salvar pessoas.

 

É de conhecimento geral o fato de que milhões de católicos tomaram a decisão de romper com a Igreja, abandonando por completo a prática religiosa ou, então, aderindo em grande número às igrejas pentecostais e sua subdivisão oportunista, o multiforme movimento neopentecostal.

 

Essa percepção abrangente faz com que muitos críticos e observadores – católicos ou não – apontem a urgente necessidade de uma reforma na Igreja, a começar pela própria Cúria, que é a instância superior do governo da chamada Santa Sé. Há muito tempo que experientes vaticanistas afirmam, sem medo de errar, que são os cardeais da Cúria os verdadeiros chefes da Igreja e, que o pontífice pouco ou quase nada pode fazer, sem a concordância do poderoso grupo que formula e controla a política eclesiástica.

 

O polêmico teólogo suíço Hans Küng, nascido em Sursee, proibido de lecionar em universidades católicas por seu pensamento extremamente renovador exposto em dezenas de livros, entre os quais A Igreja tem salvação?(Paulus, SP, 2012), portanto, numa visão estritamente contemporânea, assinalou que “com a direção da Igreja , em seu centralismo imposto de cima para baixo pela Reforma Gregoriana no Ocidente latino, ela (a Cúria) foi tornada necessária”. Contudo, “hoje em dia não é precisamente a sua destruição que se faz indispensável, mas uma reforma radical, no espírito do Evangelho e no ímpeto de Francisco de Assis”, acrescentou.

 

É impressionante a coincidência entre a fórmula sugerida por Hans Küng, a renúncia de Bento XVI e a eleição do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, sobretudo ao lembrar o inquestionável exemplo de humildade e despojamento do santo italiano, que inspirou a escolha do nome do novo chefe temporal da Igreja, Francisco I.

 

Küng chegou a dizer que a reforma da Igreja deveria propor a “renúncia aos títulos honoríficos não bíblicos, que só devem se aplicar ou a Deus ou a Cristo”, tais como “Sua Santidade, Pai Sagrado, Cabeça da Igreja”, sublinhando quão “equivocado e desvirtuador é, pelo menos, o título, eminentemente pagão, de sumo sacerdote Pontifex Maximus para o papa e seus assemelhados”. Segundo o teólogo da Basileia, “títulos adequados até são os de bispo romano, servidor dos servidores de Deus, e talvez pastor supremo”. Outra coincidência está na dispensa anunciada por Francisco de ser chamado de “papa” dando preferência ao simples “bispo de Roma”.

 

Quanto à retórica pobreza da Igreja, Küng diz que “não se trata de nenhuma pobreza romântica pouco realista, mas de renúncia à pompa e ao luxo que deriva dos primeiros tempos do poder de Pedro. Humildade no vestir, no serviço, a que deve se submeter a atitude palaciana, a guarda de honra e em especial o servir a Deus. Ordens papais e títulos honoríficos romanos têm pouco sentido em uma Igreja.” O mais importante, porém, na acepção do teólogo é a “renúncia a todo e qualquer estilo de direção absolutista, ao estilo de discursos e decretos imperiais, aos processos secretos. Nenhuma deliberação solitária, que se dê sem a participação da Igreja, negligenciando o colégio episcopal. Um sínodo de bispos que sirva não apenas de conselheiro, mas seja copartícipe nas decisões e, sempre que possível, também um conselho de leigos”.

 

A autêntica revolução sonhada por Hans Küng, que ele define como “exigências máximas” obviamente está balizada “por uma perspectiva de longo prazo”. Entretanto, lembrou a possibilidade das medidas de curto prazo, frisando que “se já a monarquia britânica e a Coroa britânica passaram por reformas fundamentais, e mesmo assim sobreviveram, também do papa se deveria exigir que ele e sua Cúria se submetessem a transformações fundamentais, passando de um Império Romano com ambientação na Idade Média para uma comunidade católica ao gosto contemporâneo”.

 

Numa análise que pode transparecer o resquício personalista da incompatibilidade no terreno das ideias, Hans Küng escreveu que “em comparação com os sete profícuos anos que a Igreja Católica viveu no período que abrangeu o pontificado de João XXIII mais o Concílio Vaticano II (1958-1965), os anos de Wojtyla como papa revelaram-se bem pouco substanciosos: apesar de inúmeros comunicados e custosas ‘viagens de peregrinações’ (com pedidos de perdão a muitas Igrejas do Oriente, igualmente custosos), para a Igreja Católica e para o ecumenismo foram muito escassos os avanços que se possam levar a sério”. No aspecto da aceitação curial de João Paulo II, o teólogo viu uma compensação pelo fato do papa ter vindo de um país (Polônia), “onde a opressão das potências vizinhas (os Habsburgos, a Prússia e a Rússia) impedira que tanto a Reforma como o Iluminismo pudessem se impor e, de maneira indireta, foi por isso que ele caiu nas graças da Cúria”.

 

Houve então espaço para a aplicação do “sistema Wojtyla”, segundo o pensador, que consistia em tornar bispos e padres submissos a Roma, fazendo com que em inúmeras dioceses padres altamente qualificados fossem “ignorados por não se mostrarem suficientemente alinhados”, a ponto de “quem fosse caracterizado como de mentalidade desviante era descartado de antemão”. Isso fez “com que em questões controversas as vozes discordantes pouco ou nada fossem permitidas, ou levadas a sério, quando não eram simplesmente caladas”.

 

A Igreja na Irlanda, Polônia, Áustria, Alemanha e Estados Unidos, lembrou, foi sacudida “por escândalos sexuais e políticos tanto no nível dos padres como no dos bispos. Esses escândalos, o Vaticano e sua hierarquia logo procuraram varrer para debaixo do tapete, mas a pressão da imprensa o obrigou a reconhecê-los”. Essa foi uma das mazelas que atravessaram quase todo o pontificado de Bento XVI, que em verdade antes de renunciar tomou atitudes enérgicas, mas insuficientes para coibir a maldade insana praticada por lobos em pele de cordeiro, muito embora um enigmático manto de proteção sempre estivesse disponível para ocultar pedófilos e homossexuais de báculo e batina.

 

Francisco I assume a cadeira pontifical, cuja pompa já deixou claro que não o seduz, num momento de crise e risco à própria sobrevivência da Igreja. Os gestos em direção à reforma são ainda tímidos e a Cúria permanece intocada, assim como as primeiras providências visando o saneamento do Instituto para Obras Religiosas (IOR), o Banco do Vaticano, terem demonstrado pouca eficácia diante da aparente trama de interesses escusos e desonestos.

 

A tarefa é pesada, e assim como Roma e a Igreja não foram feitas num dia, também a obra reformatória de Francisco, como reconheceu o próprio Hans Küng sobre seu posicionamento pessoal na questão, tem a perspectiva do longo prazo. Lembremos que em seu primeiro discurso no Rio, o bispo romano declarou não trazer nem prata nem ouro, mas o que de mais precioso recebeu: Jesus Cristo. É um excelente começo.

 

 

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